No gol o negão
de dois metros se aquecia antes do jogo com chutes pro alto em que o bico da
chuteira batia no travessão. Quando adotaram traves de metal, parafusou uma
plaquinha no bico pra fazer barulho. Plén!! Todo mundo olhava.
Às vezes fazia no meio do jogo, se o time atacava e ele
não merecia atenção. Plén! Olhos da torcida – chicote de câmara – tentando
seguir um ace. Até os jogadores se viravam. Ele fingia que nada.
O onze
(“ixtrema-isquerda”, como se apresentava) chegava de tergal acima do umbigo,
camisa de cores, pastinha de “maxcate”, Ray-ban, bico-fino. Chamado de Caju por
suposta semelhança com o Paulo César, adotou o imaginado estilo no campo e no
sotaque, embora nunca houvesse saído ali do fundo de Minas.
Pastinha marrom em cima das roupas no banquinho, ritual de
noiva (“expera, poxa vida, me emprexta o talco?”), calção no umbigo da corcova
de magrelo, perna fina, cabelo armado. Só tocava. No trotinho, pedia a bola
(“na ixquerda, na ixquerda”), mas tirava o pé na dividida e, se estava livre,
dava o passe mais fácil, mais perto, mais fraco. “Ixtilo”, respondia se reclamassem.
Saía limpo e cheiroso. Dia de chuva não aparecia (“istirão na coxa isquerda,
cara, dói demaix”).
Na lateral,
alto, forte, bigode do Belchior, alcunha Rivelino, o sujeito da voz fina e
chute chocho, tímido, isolado. Até que assumiu o caso com o laqueador de
móveis, cabelo Chanel, baixote, gordito, na estica, a carteira de documentos
comprida na mão junto ao peito, óculos escuros cobrindo a testa. Ninguém
comentou. Numa derrota, todos ficaram olhando sentidos o parceiro, engomado e
silencioso, consolando o lateral enorme, chorando sentado de meia arriada ao
lado do gramado. Triste, triste. Um senhor, autoridade, temido, membro do
Lions, chegou a ir lá levar um lenço e dar um tapinha nas costas.
O time acabou quando o Caju, sem perceber, se viu na cara do
gol. Ia tocar de biquinho, o goleiro já era, ele empinou o peito e pôs os
braços e as mãos como as de um pianista, o rumor da torcida, havia um fotógrafo
bem ali ao lado da trave, a bola mansa, só a classe, a elegância, silêncio
súbito, só o sopro seco nas folhas –
- Plén!
O goleiro dera um chute lá atrás, no travessão. O óóóóó do
chicote, o baque do ace. O Caju se assustou, hesitou (“fiquei paxmo, cara,
fiquei paxmo!”, disse muitas vezes depois, inconsolável), a bola passou nobre,
compenetrada e catita como um cavalo marinho na trilha até a linha de fundo e
ali parou, um palmo fora de campo.
Espanto.
Piscadas. Fúria.
O Caju perdeu o personagem e queria matar o goleiro. Mas
manteve o sotaque: “vou buxcar minha pixtola!”, partindo pra pegar a pastinha
envernizada. O pessoal segurava. O negão queria encarar e amassar-lhe a cara
(“sujeito metido! errou o gol e eu que sou culpado?”).
Foi o Rivelino
que conseguiu conter o goleiro. Deu-lhe uma chave de braço e o jogou no chão.
Ficou ali em cima, imobilizando-o enquanto o Caju insistia: “minha pixtola, vou
ixtourar ox miolox dele!”.
O ralo público, que não estava gostando do jogo, vibrou
com a confusão. Mas depois se cansou: o negão lá derrubado, o Caju já só
fingindo que ia se vingar (“quase me mata de suxto, vou raxgar esse negão no
pexcoço!”), o jogo acabou, começou todo mundo a ir embora.
Só o laqueador,
lá no cantinho, na arvorezinha perto do sorveteiro, é que ficou. Calado.
Nervoso, talvez com ciúme daquela imobilização.
O fato é que o time acabou ali.
Primeiro, o
Rivelino disse que não poderia ir mais. Ia ajudar na fábrica de móveis
(“cresceu muito, muito movimento”). O Caju não queria se arriscar a encontrar o
goleiro e mudou de praça – dizem que pro interior do Rio, onde tentou manter o
“ixtilo” mas ganhou o apelido de Mazzaropi (pela calça ou pela prosódia) e
largou o “ixporte” alegando perseguição.
O negão foi ser lixeiro. Ou bombeiro. Ou bedel.
Não sei.
Nunca mais vi.
(Texto de LUIZ GUILHERME PIVA)