17 junho 2015

Quanto Tempo

A esposa o encontrou parado na frente do espelho, com a espuma de barbear pela metade, os olhos fixos.
“No meu tempo…”, ele dizia, atento às próprias feições.
Tinha sido a primeira vez. Depois da pelada semanal, na hora da cerveja.
Tantos anos, tanta pelada, tanta cerveja, tanta gente, tanta conversa, e ele nunca falara aquilo.
Mas naquela tarde começara uma história ou um argumento com a expressão que o atingira como uma bolada no ventre: “no meu tempo…”.
Parou um segundo, ninguém reparara, encurtou o assunto. Silenciou. Foi embora mais cedo do que de costume.
Agora ali, depois do banho, no meio da barba, intranquilo, repetia a frase.
Ela quis saber o que estava acontecendo.
Só então ele a viu.
Entre virar o rosto e encará-la, lembrou-se de muitas peladas que jogara quando criança e adolescente e dessas que – “há quantos anos, meu Deus?” – ele, já adulto, antes mesmo de se casar, jogava todo sábado. Dos campos em que jogara, que tinham mudado várias vezes. De tanta gente que saiu, de outras que chegaram por pouco tempo ou ficaram, de alguns que se machucaram e pararam, das desavenças que afastaram amigos, de sobrinhos de alguns que se incorporaram, de amigos novos, dos mais antigos que perderam assiduidade. Dos jogos na chuva, no barro, num terrão com formigueiro, num sítio de um sujeito rico – “grama verdinha e plana, alambrado, traves com rede – um dia vou ter um!” –, na beira da estrada, em outras cidades. E de quando – “há quantos anos, hein? Quantos?” –, fixaram-se no campinho de grama sintética do clube campestre, alugado, ele organizava a vaquinha, cobrava, anotava, comprava bolas, arrumava gente pra completar quando não dava quorum. E comandava a cerveja depois do jogo. Um gol de sem-pulo. Um braço quebrado. Como é possível perder um gol daquele? Quanta pelada. Quanta conversa. Quanta gente.
Quanta cerveja.
Viu no rosto da esposa as marcas do tempo que nunca vira até então. As mesmas que só tinha visto no seu naqueles minutos que tinha ficado na frente do espelho repetindo a expressão que o abalara.
Limpou a espuma do rosto com a toalha.
Abraçou-a. Disse que não era nada.
Acalmou-se.
Mas subitamente a ideia de futuro o assombrou e o fez abraçá-la mais forte: “quanto tempo, meu Deus? Quanto tempo?”.
(Texto de Luiz Guilherme Piva, autor de “Eram todos camisa dez”)