Ninguém soube
dizer de onde ela tinha vindo.
Talvez tivesse caído do alto do morro, onde provavelmente
ficara desde a pelada do dia anterior: a meninada descera para suas casas –
barracos amontoados em vielas tortas e íngremes – e a deixara lá. Mas os
meninos garantiram que havia muitos dias não jogavam.
O fato é que, de
manhã cedinho, o pessoal descendo os becos, as janelas esfregando as pálpebras,
a bola veio pingando. Rolando devagar no começo, nas pedras do alto do morro,
depois quicando nas lajes, ganhando altura, estufando os lençóis e as roupas
coloridas como as de um festival ou de um feriado, esgueirando-se entre antenas
e postes, batendo nas portas como se trouxesse cartas, pulando nos degraus de
escadas sem começo nem fim, mergulhando nas bacias, nas latas d’águas nas
cabeças, nos tetos de zincos pendurados pertinho do céu, às vezes ganhando
enorme altura e formando outro olho, vesgo, ao lado do sol, às vezes perdendo
velocidade e amortecendo o quique e deslizando nas ruelas mais planas, e as
pessoas paravam para olhar, para dar caminho, para abrir as portas, a molecada
correndo atrás, sem ninguém ousar tocá-la, todos dando-lhe passagem como num
cortejo, até com reverências, abrindo a boca nas manobras mais elásticas, torcendo
nos trechos em que ela se aninhava em obstáculos e se arrastava até o próximo
declive e retomava a descida aos pulos, todos com os rostos para o alto, e para
baixo, e para o alto, e para baixo, até que ela foi chegando ao fim do morro,
ao limite entre a favela e a cidade, o asfalto, os carros, e tropeçou numa
pedra mais alta, adquiriu força maior, elevou-se acima dos prédios da rua – e
não desceu.
Não desceu.
Ficou todo mundo
olhando para o alto, procurando, esperando sua volta triunfante, para vê-la
quicando no asfalto até perder lentamente a inércia e repousar em algum canto,
ou cair em cima de um caminhão, para cruzar fronteiras, ou parar embaixo dele,
atropelada.
Mas não desceu.
O pessoal
estranhou. Perguntaram-se com olhares, gestos, palavras, mas ninguém soube
dizer.
E foi cada um pro seu canto. Cada qual com sua dor.
O curioso é que
a meninada resolveu ir ao alto do morro, onde costumavam jogar e de onde a bola
devia ter partido.
E não é que ela estava lá?
(Texto de Luiz
Guilherme Piva, autor de “Eram Todos Camisa Dez”)
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