Pendurados no alambrado, trinta do
segundo tempo, um a zero, os torcedores gritavam pra segurar o jogo, pra cair,
pra demorar no tiro de meta, pra chutar pra longe. Por duas vezes a bola caiu
na torcida e não voltou enquanto dois cabos não foram lá pressionar.
E o gandula faz aquilo? Na primeira
vez passou, na segunda o xingaram, mas na terceira queriam pular o alambrado e
pegá-lo. Ele era um corisco: mal a bola saía, ele a pegava e entregava ao
cobrador, tanto local quanto adversário. Tiveram que segurar um que ameaçou
enfiar o pau da bandeira pelo arame para atingi-lo. O gordão que tocava o surdo
quis lançar o instrumento lá do alto na cabeça do moleque. Se não fossem os
dois cabos, nem sei.
Deu certo. O gandula parou de ir na
bola e, de medo, acabou sumindo. A bola saía e os jogadores do outro time é que
tinham que buscá-la.
Mas aí foi o médico. Com as quedas
sucessivas dos jogadores pra ganhar tempo, ele começou a ser acionado. E não é
que ele entrava correndo, jogava a aguinha, o spray, dava um tapinha no jogador
e fazia tinindo pro juiz pra recomeçar?
Quase quarenta e o doutor já tinha
entrado, nesse ritmo, umas cinco vezes. A fúria da torcida se voltou contra
ele. Mas xingá-lo era um problema: cidade pequena, todos o conheciam e
respeitavam, atendia nas comunidades carentes, às vezes não cobrava consulta, ajudava
o time de graça – enfim, não dava.
O gordão do surdo mordia a baqueta,
outros puxavam o cabelo, enroscavam a camisa, afundavam a cabeça nos joelhos e
se desesperavam a cada corrida do médico pra dentro de campo.
Quarenta e três. O adversário no ataque.
Pressão. Bola na trave, confusão na área, bate-rebate, escanteio. O goleiro
finge a contusão e cai. Era hora de segurar de vez. Parar o jogo. Esfriar até
acabar.
Mas eis que o doutor se levanta e
começa a partir rápido pra atendê-lo. O do surdo não aguentou. Gritou: “Ai! Tô
morrendo!”. Vermelho, a veia do pescoço saltada, os olhos saindo, a língua
roxa, as mãos no peito. O surdo caiu-lhe das mãos e rolou os degraus e ele
desabou babando.
O impacto do grito e da cena
paralisou todo mundo. O silêncio chamou atenção. Abriu-se uma clareira onde o
corpo dele jazia arfante.
O médico se virou, viu e ordenou:
“Não mexam nele! Abram o portão!”.
Não tinha portão naquele ponto –
rasgaram o alambrado e o enrolaram com força. O médico passou com a maleta,
subiu os degraus e parou diante do corpo, que respirava com dificuldade, as
mãos bambas, o olhar ermo. O médico fez massagem torácica, mediu o pulso fraco,
jogou água no rosto, desabotoou a camisa, puxou as pálpebras, pôs o palito na
língua – e ficou preocupado. Chamou os dois cabos e a maca, reuniu mais uns
oito para aguentar o peso e iniciou, com cuidado, a remoção.
Atravessaram devagar, com muita
dificuldade, a distância até o portão, todos abrindo espaço e acompanhando
apreensivos.
Perto da saída o corpo sacudiu forte,
estrebuchou e caiu da maca. Foi um desespero: sustos, gritos, correria. De novo
o doutor o examinou detidamente, verificou se havia fratura e comandou a
operação de erguê-lo até a maca e conduzi-o até a ambulância.
De dentro do pequeno estádio ouviram-se
a sirene, a aceleração e os pneus arrancando.
Tudo levou meia hora ou mais. O
goleiro seguia caído. Já escurecia. A torcida urrava pelo fim do jogo. E o juiz
a atendeu, para ira dos adversários. Acabou. Vitória local, euforia na
arquibancada, foguetes, invasão de campo, esperança renovada para as próximas
partidas.
Na ambulância, médico e paciente na
parte de trás, em silêncio. Até que o torcedor se levantou, sentou-se na maca,
segurou as mãos do médico e disse: “Obrigado, doutor! Eu estou ótimo. Não tive
nada, não. Agora, por favor, me escute: o senhor nunca mais, entendeu?, nunca
mais, pelo amor de Deus, tente atrapalhar o nosso time!”.
(Texto
de Luiz Guilherme Piva)