Tinha empurra-empurra, reclamações e
zoeira com os esbarrões e as posições inconvenientes, gritaria na janela quando
passavam por moças no caminho, rádio ligado, bateção no teto e no lado de fora
da lataria e sacolejos enormes na estrada de terra esburacada.
Valia a pena. Jogo em fazenda grande,
com campo gramado e rede. E sempre rolava um bicho – pouca coisa, mas dava pra
juntar uns trocos jogando nas redondezas. O histórico de vitórias era bom.
O mais velho contava, pra inveja dos
mais novos, que tinha até comprado um Vaporetto (“dos grandes, com rodinha”)
pra mãe só com os bichos. Outro mostrou o tênis – de segunda mão, mas novo. O
goleiro exibiu o Ray-Ban (“legítimo, legítimo”).
E nesse jogo o bicho seria dobrado,
porque o anfitrião convidara.
Só que a Kombi quebrou. Falhou um
pouco, tossiu, rosnou, atirou, emudeceu, bufou – e parou. Nenhum sinal na
chave. Uma fumacinha na tampa do motor. Desceram todos, palpitaram, cutucaram,
mexeram nuns cabos e tentaram empurrar. Nem soluço.
Começou a irritação, o pessoal
reclamando com o dono, bate-bocas, empurrões, deixa-dissos, até que alguns
decidiram que deveriam ir a pé.
“A pé?” “Estão loucos?” “A pé, sim.”
“Mas são dez quilômetros ainda!” “Bora a pé!” “Vai ter jogo e vai ter bicho!”.
Só o dono ficou. Coçando a cabeça,
olhando o motor, torcendo pra passar alguém ali no ermo.
Tardinha. Noite. Madrugada. Ninguém
voltou.
Ele dormiu dentro do carro e acordou
com o sol no rosto. Nem sinal do time. Nem de ninguém. Virou-se com a água de
um isopor e as goiabas do entorno.
Quase meio-dia e passou um senhor na
bicicleta. Podia ajudar, tinha um sobrinho mecânico.
Só no fim da tarde vieram os dois. O
rapaz deu um jeito e o motor funcionou.
O dono foi até a fazenda onde seria o
jogo.
Não tinha aparecido ninguém lá. O
time da casa ficara esperando um tempão e desistira.
Voltou com a Kombi gaguejando até em
casa. Procurou os jogadores nos sítios e roças e não achou ninguém. Nem
notícia.
Depois de uns dias sem qualquer
sinal, fizeram um velório simbólico coletivo.
Até que um dia um dos mais novos
voltou. Pra roda assustada contou que na caminhada pra fazenda encontraram um
caminhão cujo dono, vendo-os uniformizados, resolveu levá-los pra cidade dele,
na lona, longe, depois da divisa do estado. E lá jogaram e lá ficaram. Mais
ainda, o caminhão começou a excursionar com eles, pagar bichos, arrumar roupa,
pensão, comida, ganharam as estradas, depois alguns se dispersaram, ele seguiu
jogando com os demais.
“E por que voltou?”
Abriu a sacola, pegou os óculos
escuros, o par de tênis e o Vaporetto, que entregou, emocionado, à mãe. Tudo
comprado com os bichos das excursões.
“Já conquistei o que queria.”
E por lá ficou, no trabalho da roça,
enquanto o tempo fazia morrerem a mãe, dois dos seis irmãos, muitos conhecidos
– e ele mesmo, num dia de chuva, numa foiçada de um vizinho.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)