Dia 31, às onze e dez da noite, eles
começam a pelada.
No escuro.
Só com a luz da lua e os faróis da
caminhonete, num terrão ermo, longe do vilarejo, alcançado por um atalho bêbado
que sai da estradinha de terra e termina ali, ao lado do bambuzal e do brejo,
atrás do monturo, dentro do seu cheiro.
Põem umas camisas no chão demarcando os gols, aplainam com os pés um pouco
dos montes, separam os times e jogam sem que ninguém fale nada.
Esse é o trato.
Todos mudos.
Não se pode gritar, reclamar,
comentar, pronunciar nem balbuciar absolutamente nada. Desde que sobem na
carroceria para vir jogar é proibido abrir a boca.
Na estradinha, olham-se calados, às vezes pousam as pupilas nas estrelas
ou cerram as pálpebras e aspiram as nuvens, o motor crocita no breu quente, o
diesel roça os cabelos, cercas, árvores despenteadas, campos cheios de
fantasmas, cercas, até que tudo vá sumindo, o freio relinche e a bola seja
atirada pelo motorista para o meio do campo.
E jogam.
Ninguém dá um pio. Só o barulho dos passos, dos encontrões, dos chutes, do
chocalho das derrapadas, das respirações, das cusparadas no chão. A depender do
momento, quando param à espera de alguém buscar a bola, até o suor derretendo
nas faces e garoando na terra se ouve.
Às cinco para a meia-noite param para
o intervalo.
Aproximam-se do meio de campo, dão-se as mãos e aguardam a meia-noite.
A bola fica no centro da roda. Como
uma vela que consome o tempo.
O pavio do silêncio arde, crepita.
Então, no horizonte, na divisa do
céu, rojões sussurram, faíscas chuviscam e eles, juntos, pegam a bola e a
erguem como um andor.
Ali se mantêm: olhos fechados, bocas fechadas, cinco minutos de nada, de
ausência, de morte.
Meia-noite e dez relançam a bola ao
chão e recomeçam.
Tudo igual. A mesma sonoplastia, a mesma mímica, o mesmo absoluto escuro e
sem voz.
Cinco para a uma, fim de jogo.
Caminhonete, atalho, cercas, estrada, cercas, vilarejo, cada um na sua
casa, cada um na sua vida, cada um no seu jogo, no seu barulho, na sua
claridade.
O motorista segue sozinho, pára perto
do rio, desce, joga a bola como uma oferenda e volta para sua casa.
É Ano-Novo.
(Texto
de Luiz Guilherme Piva)