23 maio 2018

Quem Bate?

Eram amigos de muitos anos. De décadas.
Desde o primário, alguns. Outros, do ginásio. Sendo ou não da mesma sala, sempre andavam em grupo. Recreio, festas, clube.
Mesmo em faculdades e cidades diferentes, toda semana se encontravam. Bares, churrascos, noitadas.
Casaram, viajaram, mudaram ou ficaram – mas não deixavam de se ver.
Bola é que só jogaram uma vez juntos. Nunca haviam reparado. Cada um tinha um pessoal que jogava num lugar, eram dias diferentes, ou por distração, ou sabe-se lá por quê.
Quando perceberam é que resolveram marcar. Arrumaram um sítio, esposas, filhos, outros convidados, cerveja, piscina, música, seis pra cada lado, bola, rede, vamos lá.
Par ou ímpar. Esse, aquele, mas e eu?, por que ele?, surgiram umas rusgas.
Depois uma entrada dura. Em seguida, um não deu o passe pro que estava na cara do gol. Outro reclamou de uma bola perdida na defesa. Falta! Não foi! Ladrão! Empurrões, caretas, braços pro ar.
As famílias e os demais notaram, chamaram pra parar, comer, dançar, nadar.
Não. A coisa estava renhida. Carrinhos. Dedo na cara. Palavrões.
As crianças espantadas. O churrasqueiro entrou em campo com o prato distribuindo coraçãozinho pra distrai-los – mas foi rispidamente afastado.
Alguém aumentou a música, outro veio com a cerveja. O empurra-empurra e os xingamentos, porém, já estavam em nível tal que ninguém queria recuar.
E zero a zero!
Escurecendo.
As discussões e as ofensas obrigaram as mães a puxar as crianças. Três delas quase arrastaram os maridos do campo: “Pelo amor de Deus, parem!” – não adiantou.
– Quem fizer ganha! – a ordem partiu de um deles, não se sabe quem, mas foi obedecida de imediato. Um alívio para quem assistia, uma tensão a mais para os que jogavam.
Dois trocaram tapas num lateral duvidoso, o goleiro subiu com o pé no peito do atacante, o beque deu de bico de propósito para acertar a bola na cara do lateral – tudo já fora de controle.
Bufavam, caíam, urravam, suavam como touros lancetados.
Eis que houve pênalti.
E sem discussão: a bola ia entrar, o goleiro já batido, o zagueiro teve que pegar com as mãos.
Silêncio.
Resignação humilhante de um time, ansiedade sobranceira do outro.
Bola a seis passos do gol. Goleiro parado.
Os touros afastados, as narinas em fole.
Em volta do campo, todos assistindo crispados. A música ao fundo, a fogueira do churrasco piscando longe.
O batedor tomou distância, mãos nas cadeiras, olhou pro céu.
Virou-se para trás: todos lá, cabeças baixas, cabeças altas.
Enxugou a testa.
Foi para a bola com raiva – e parou de repente.
Abaixou-se, pegou a bola, virou-se e disse: “Se alguém quiser, pode bater. Eu não bato”.
Escureceu de vez, a fogueira estalou, um neném emitiu um berreiro.
Moscas de calor nos rostos.
Ninguém quis.
Acabou zero a zero.
Foram para a festa, beberam, cantaram, comeram, se abraçaram, contaram casos da vida toda – foi o melhor churrasco da história, dizem até hoje.
Mas nunca mais jogaram.
E, a bem da verdade, desde então mal se veem.
Só por acaso. Mas assim, como se não se conhecessem.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)
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