23 setembro 2018

Vossa Vontade

Franzino, rápido, pés grandes, franja lisa e teimosa sobre os olhos, o craque do bairro. Logo também de outros bairros. Mas era garoto ainda, filho único, não podia jogar sempre, só quando a mãe deixava.
Ajudava-a, viúva, a pegar e entregar as roupas que ela lavava, passava e costurava. E tinha a escola e as lições.
E a missa.
Coroinha, pajem, sempre de camisa branca e short e sapatos pretos, não faltava a nenhuma. Era o orgulho da mãe na igreja. Às vezes ela o olhava ajudando o padre, o cabelo molhado, os olhos distraídos, e suspirava.
E prometeu, numa oração, que ele seria padre.
Ele se espantou. Não queria: seu sonho era jogar futebol, ir para um grande time, já tinha gente o chamando para fazer peneira.
Mas era um chamado divino, ela disse.
Nas últimas peladas antes de ir para o Seminário, jogou mais do que nunca: gols, arrancadas, dribles e chutes que estatelavam bocas e olhos. Ao final, ia para casa sem falar com ninguém. Na escola perguntavam o que estava acontecendo, mas ele não dizia.
Foi se confessar, questionou o padre, e ouviu que era promessa da mãe direto para Deus. Que nada se poderia fazer.
O choro. O abraço. A despedida. O tempo.
A solidão.
Voltou ordenado. Conseguiu a paróquia local, bem ao lado do campinho de areia em que jogara na infância.
A mãe doente, acamada, o recebia quase todo dia e chorava de emoção. Até que faleceu.
Ele rezou no velório, carregou o féretro, chorou no sepultamento.
E voltou a pé, devagar, para a paróquia.
Na janela, à noite, olhando o céu, imaginou Deus comandando a rotação, a translação e os destinos das gentes.
Então viu nas estrelas o desenho de um campo, de um estádio, de bolas e de torcedores. Ouviu os gritos de gol. E teve a revelação: Deus jogava bola no firmamento!
Viu-o claramente correndo, driblando, fazendo gols e suando com os cabelos molhados sobre os olhos, como um garoto magrelo e sozinho num campo de areia.
E viu sua mãe na torcida, feliz com a comemoração de Deus.
Largou ali a batina.
Não era tão moço mais, mas sabia qual era sua vocação.
E qual era o chamado divino.
Hoje não há um campo na cidade em que ele não seja visto, a qualquer hora, em qualquer pelada.
Chutando, driblando, correndo, suando.
Honrando a obra do Criador ao fazer, enfim, o que ele acredita haver de mais sagrado, tanto na Terra quanto no Céu: jogar futebol.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)
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