Enchiam a cara, se fantasiavam e iam
de Kombi pro campo atrás da olaria.
Período infalível de chuva, a caminhada da estrada – a Kombi não se
arriscava – até o campo era no barro.
Plóft nos blocos de lodo e de argila
no sulco do círculo do cavalo.
O campo era a mesma coisa.
De botas, chinelos, descalços, magrelos, barrigudos, sem dentes,
postiços – no final do jogo acabavam sendo uma coisa só, todos em gesso marrom,
as armaduras meio secas meio pingando.
Mas a bola sempre tinha que ser nova,
branquinha, envolta em papel celofane, imaculada como numa coroação.
Ninguém sabia o placar. Nem de que lado era. Eram bolos atrás da
bola onde ela estivesse.
Sem lateral, sem escanteio, sem juiz,
sem tempo, sem falta.
Só não valia mão. Mas quando ocorria
tinham que se lembrar – ou definir naquela hora – de que time era o infrator.
Também não podia perder o gorro, preso com grampo, barbante,
esparadrapo, fita isolante, durex.
Se ficasse sem ele, estava fora do
jogo.
Senão, não era a pelada do Papai Noel.
Intervalos ocorriam sempre que alguém
parava pra uma cachaça. Os outros vinham atrás.
E só acabava quando um número razoável, ao cair, já não se
levantava sozinho.
Todo ano isso.
Voltavam à cidade num estado de dar medo, com moscas, capins,
gravetos e objetos não conhecidos grudados nas múmias de lama.
Ninguém via graça naquilo.
Nem entendiam a razão de uma brincadeira que ninguém queria ver,
uns marmanjos naquela nojeira.
A bola, agora imprestável, não
voltava.
Ficava lá, no campo, com as cascas grossas de barro, se misturando
à terra, nela se decompondo, se transfigurando.
Alguém, muitos anos depois, contando
essa história num bar, interpretou que a tradição esquisita era uma espécie de
missa.
E que a bola seria uma oferenda.
E que era desse jeito porque Natal só
é bom quando a gente é criança.
E que eles não viam forma melhor de voltar à infância.
Por que era barata: a bola, na
vaquinha, saía quase de graça.
Simbólica: porque viemos do barro e a ele voltaremos.
E sagrada: porque o futebol – a
pelada – é a transcendência maior que os humanos podem experimentar.
Os que, na mesa, o ouviram, mandaram-no parar de conversa mole.
Que a tradição era só farra de
bebuns.
Ergueram os copos, brindaram e disseram-se Feliz Natal.
Mas um deles, ao menos, eu sei que,
apesar de zoar o amigo, ficou pensando nas peladas da infância.
E que o que ele achava do Natal quando era criança era muito
parecido com elas.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)