O chute veio brusco,
imprevisto.
Braço direito estendido ao limite, estatelou seco e sem dó o
corpo inchado no asfalto frio.
Por debaixo do jeans
puído, a carne da coxa rasgava.
Não havia, entretanto, vestígio de dor no olhar vidrado na bola
rasteira que roçou a ponta de seus dedos antes de sair pela linha de fundo.
Feito o milagre,
ergueu-se transbordando a serena malícia de Higuita, el Loco.
Mas não era Higuita.
Nem louco.
A tarde já se esvaia naquela sexta e junto com outros moradores
das ruas mais populosas da América, ele batia um racha.
Não qualquer racha.
É que depois da polícia incendiar seus barracos, pertences e
documentos para garantir a limpeza dos caminhos que levarão os torcedores ao
estádio da Copa, dezenas de moradores de
rua fecharam a Líbero Badaró, na
altura do Viaduto do Chá com a Praça do Patriarca, e improvisaram um rachão na
frente da prefeitura de São Paulo.
Queimar pneus. Virar
viaturas. Depredar bancos. Tudo poderiam. Resolveram jogar futebol.
Contradição, dirão alguns. Alienação, outros.
Desconfio.
Sem nada possuir além do que podem carregar, aqueles corpos que
sumiam nas roupas doadas em alguma campanha do agasalho construíam os mesmos
gestos e entrega que os telões full HD das arenas bilionárias exibirão durante
a Copa.
Bola não exige teto,
salário ou chuteira de couro de canguru.
Quer o chute, apenas.
Ou a coxa rasgada do
Higuita da Badaró.
Pouco importa se belo ou feio.
Digno.
Dignidade negada, mas nunca apagada.
Nem que seja num
racha.
(Texto de Thalles Gomes)