Amigos, vocês passaram o tempo todo da Copa falando de mim: Nelson
Rodrigues pra cá, pra lá…
Antes eu era o pornográfico, o reacionário, agora virei técnico de
futebol. E me citavam. Todos diziam que tinha acabado o nosso “complexo de
vira-lata”. Mas esse complexo que eu descobri pode existir também ao avesso
(Freud nem me olha aqui no céu, com uma inveja danada). Mas ele não é apenas o
pavor diante dos estrangeiros, a cabeça baixa, o “sim, senhor”, a alma de
contínuo. Não.
Esse complexo aparece
na submissão à Fifa, lambendo-lhe os pés como cachorrinhos gratos, nas arenas
grã-finas. O vira-lata estava ali. Podemos botar uma fitinha cor-de-rosa no
vira-lata que ele continua sendo um legítimo vira-lata, cheirando postes e
abanando o rabo.
Para nossos jogadores ricos e famosos, o Brasil é a vaga lembrança
da infância pobre, humilhada. O país virou um passado para os plásticos negões
falando alemão, todos de brinco e com louras vertiginosas. Não são maus
meninos, ingratos, não, mas neles está ausente a fome nacional “por um prato de
comida,” a ânsia dos vira-latas.
Já disse e repito que,
antes, nas Copas do Mundo, éramos a pátria de chuteiras. Hoje, somos chuteiras
sem pátria. Fomos infeccionados pelo futebol europeu, mas pela metade; ficamos
na dúvida se somos Pelé ou Dunga.
Nesta Copa, só o povo estava de chuteiras, para esquecer os
escândalos que lhe mergulharam em cava depressão. Foi diferente de 1950. Lá, sonhávamos com um futuro para o país.
Agora, tentamos limpar
nosso presente. Somos uma nação de humilhados e ofendidos, pois o país é
dominado por ladrões de galinha e batedores de carteira. E a população queria
que o escrete fizesse tudo o que o governo não fez. Mas era peso demais.
O brasileiro não estava preparado para ser o “maior do mundo” em
coisa nenhuma. Ser o maior do mundo, mesmo em cuspe a distância, implica uma
grave e sufocante responsabilidade. Além disso, era um time de várzea.
Isso era o óbvio; mas
foi ignorado. E quando o óbvio é desprezado, ficamos expostos ao mistério do
destino. E um dos fatos óbvios foi o endeusamento do técnico. Felipão era mais
importante que o time. E ninguém é mais obstinado do que o sujeito que é
portador de um erro colossal. O ser humano acredita mais em seus equívocos do
que em suas verdades. O técnico é sempre contra a opinião geral.
Em vez de orientar as vocações dos rapazes, Felipão achou que todos
tinham de caber em sua estratégia. O técnico devia ser um reles treinador,
quase um roupeiro, humilde diante dos craques. Mas o Felipão os tratava como
garotinhos inseguros ou então parecia um “Mussolini” de capacete e penacho. A
própria figura do Felipão era deplorável – nervoso e malvestido, quase de
pijama, era o retrato físico de nosso despreparo. O único jogador do “passado
glorioso” foi Neymar – Didi, Zizinho, Ademir guiavam seus dribles.
Quando o alemão fez o
primeiro gol, sentimo-nos diante da verdade de que os próprios jogadores
suspeitavam: éramos 11 solitários, nosso time era uma ilusão que parecia
realidade por causa de Neymar. Nossa meta não era o gol, era Neymar. Esse jovem
gênio nos cegou, e com ele acreditávamos que o Brasil voltaria a seus melhores
dias. Mas o Brasil nunca está em seus melhores dias. Não esperávamos uma
vitória, mas uma salvação. Só a taça aplacaria nossa impotência diante da zona
brasileira – era nossa única chance de felicidade.
E aí começaram as interpretações dos idiotas da objetividade: por
que perdemos? Tentam explicar a derrota como uma bula de remédio. Como se a
derrota tivesse explicação; toda derrota é anterior a si mesma, ela começa 40
anos antes do nada e vem desabrochar em nossos dias. Mas só podemos entender o
que “não” houve. Atrás da derrota, estavam todos nossos vícios seculares:
salvacionismo, milagres brasileiros, fé no improviso, vitórias abstratas e
derrotas políticas.
Além disso, há entre
nós e a loucura um limite que é quase nada. Enlouquecemos diante da Alemanha.
Nessa hora do jogo, a
loucura explodiu feito uma libertação. Isso, nossa loucura não foi de Napoleões
ou Neros, nossa loucura apareceu como um fundo desejo de parar, de ter sossego.
Nos jogadores surgiu a ânsia do fracasso, como uma exaustão diante de tanta
incapacidade.
Ao contrário do que disse o Parreira em 2006, de que “não estávamos
preparados para perder”, dessa vez estávamos todos preparados para a calamidade
e secretamente sabíamos disso. Depois daqueles seis minutos em que houve quatro
gols, o absurdo adquiriu uma doce, persuasiva, admirável naturalidade.
Depois de 5 a 0,
queríamos perder mais, queríamos espojarmo-nos na derrota absoluta, sentíamos a
doce nostalgia do aniquilamento. E aí quem surgiu no estádio? O imponderável
Sobrenatural de Almeida passou a dirigir o time como um técnico espectral, um
fantasma trapaceiro. Dava até para ver que os alemães tiveram pena de nós, os
anfitriões desmoralizados.
Até Felipão fez autocrítica. Mas a autocrítica tem a imodéstia de
um necrológio redigido pelo próprio defunto.
É isso. Sempre que vai estourar uma catástrofe, o ser humano cai
num otimismo obtuso, pétreo, córneo. E perde.
Agora, estamos com uma angústia épica, como uma víbora crispada
dentro de nós.
E depois de perdermos
para a Holanda por 3 a 0, vimos que não houve derrota – como haver derrota se
não tínhamos time? O povo viu no fracasso a confirmação de sua sina de
vira-lata e desceu as rampas arrastando os chinelos, como em 1950.
Agora, eis o nosso dilema: ou o Brasil ou o caos. O diabo é que temos
a vocação do caos. O Brasil precisa ser feito, e nós não o fazemos. O mal da
cultura brasileira é que nenhum intelectual sabe bater um escanteio.
Mas ninguém cresce sem
sentir o gosto amargo da vergonha. Sempre fomos condenados à esperança,
ansiando por uma redenção pelo futebol, mas pode ser que agora a gente vá
assumir a própria miséria, a própria lepra, e isso será nossa salvação.
(Texto de ARNALDO JABOR, no Estadão)