01 outubro 2014

Parador

A mulher carrega um saco enorme, branco, cheio de roupas, e tenta sentar do lado dele.
Tem umas três crianças chorando, aos gritos.
O sol na estrada embaça o pensamento, entorta a paisagem e ameaça derreter o ônibus.
Mandaram buscá-lo. Tinha jogo no domingo, ele se mudara pra trabalhar na cidade maior, a 100 quilômetros.
Ligaram pro vizinho com o recado. Pagavam a passagem!
Nem a janela aberta refresca, e a poeira e sol grudam na cortininha, no banco rasgado, na calça, no pescoço manchado do velho com o chapéu em cima do rosto.
No fundo um rádio esgoelando em meio ao balido do motor na subida. Prêmios, anúncios, recados.
Pára. Sobe o fiscal.
Pára. Desce um gordo encharcado.
Pára. Sobem 20 alunos descalços, berrando.
Sempre foi titular. O pessoal até falou que sentiria falta. Mas pagar a passagem pra jogar? Sorri.
Talvez paguem o almoço e a janta? Peço? Ou espero o resultado?
E se perdermos? Melhor pedir antes.
Será que todo domingo?
Pára. Cruza a estrada uma boiadazinha magra, mosquitada, grudenta.
Um dos alunos espirra e o catarro gruda no braço do banco. Gargalhadas, cascudos, pulos.
A freada por causa do buraco, o solavanco – cai um embrulho de queijo do maleiro do teto, o homem do rádio xinga e o do chapéu acorda com a boca aberta.
Não fume charuto, cachimbo ou cigarro de palha. Proibido falar ao motorista. Não sente no motor.
Pelo espelhinho vê o motorista pingando, a camisa fechada no colarinho sebento, molhada.
Pára. Entra um rapaz enorme, magro, de bermuda e camiseta – coitado, deficiente. Tem um apito pendurado no pescoço e a mãezinha mínima e velha do lado.
Sem motivo, apita alto várias vezes, de quando em quando. A mãezinha o afaga.
Pára. Os alunos descem e zoam e xingam o rapaz do apito e corrrem atrás do ônibus jogando pedras e rindo.
Se eu jogar bem, vão buscar sempre. E ainda hotel, comida, bebida.
Acho que foi pelo último jogo.
A mulher empurra o saco de pano gigante e quase o amassa. Pede que ele a ajude a descer. Lá fora, pede que ele o coloque sobre a cabeça dela.
Pequena e magra, vai com o saco no cocuruto, uma mão no quadril dobrado como um coxo, varando as cercas.
Sobe. O rapaz do apito tomou seu lugar. A mãezinha do lado.
A cabeça bate no teto com os sacolejos.
Freada. Vem um pacote de mantimentos no chão, abrindo e espalhando latas.
Ou foi ela que quis me trazer de volta? Mas aí o pai dela não ia pagar. Ela deu um jeito? Será que ele sabe?
Ela ficou com medo de eu sumir. Não acredita.
Pára. Desce o rapaz apitando, depois fica olhando e dando tchau, a poeira no acostamento fazendo-o sumir.
O catarro do braço do banco resseca na ponta e fica pendurado, badalando os segundos.
Pára. Desce o fiscal. Sobe um homem com duas galinhas nas mãos, cacarejando como um estádio inteiro.
Falou com o pai dela e então ele, será? E a cidade, a idade, o futuro?
O motorista dá umas cochiladas. Ele vai até lá. Ouve que tá acostumado.
Pára.
Ele é quem desce.
Em frente ao muro do campo. Quase na hora do jogo.
Amarelo e úmido de ônibus, estrada e sol.
Não sabe se ela está lá. Se vai jogar bem. Se as coisas irão adiante. Ou se tudo vai parar.
Sente um medo frio e agudo e suado e sujo e barulhento como um apito dentro da cabeça como um rádio sem sintonia como as galinhas bicando a alma como gritos no fosso da barriga um medo de dar caganeira um medo de nem sabe o quê.
Olha em torno.
Sai correndo atrás do ônibus gritando.
Pára. Ele sobe.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)