15 abril 2015

Cartolicismo

O sujeito não jogava nadinha de nada. Zero à esquerda menos zero. Não era nem o dono da bola – dono que era perronha, mas sonhava-se craque. Pra ser sincero o distinto nem gostava de futebol. Gostava mesmo era de dinheiro.
Onze camisas e uma bola. Campinho de barro vermelho. Não tinha lugar pra ele nem pro dinheiro. Futebol era apenas diversão. Futebol pagão sem lenço nem documento.
Mas o país cartorial exigia que tudo tivesse licença, atestado, alvará, segunda via e lá se foram os meninos vestirem o uniforme dos colégios religiosos, das agremiações quatrocentonas, dos clubes de bela e nem tão bela estampa.
O sujeito não gostava de bola, mas gostava de estar nas manchetes e fofocas dessa vida assumiu o futebol. Polainas, gravatas, cartolas e bigodinho, o sujeito transformou o que era simples em atividade congressual. O fato simples de botar uma bola entre duas pedras ou duas traves, viu-se subitamente engessado por dezenas de regras.
Uma dia surgia a federação, noutro a confederação, ali um tribunal de justiça, acolá um efeito suspensivo.
A religião que não tinha deus virou Monte Olimpo. Os jogadores eram incensados pelas multidões; os dirigentes manipulando os cordões do circo de marionetes. Durante muito tempo, quase um século, a paixão infantil daquele jogo de moleques suportou a tudo e todos como somente a paixão consegue suportar. Palcos lotados, gritos histéricos, barbaridades nas arbitragens e nas regras do esporte toleradas com o mito de que o belo no futebol era o erro. Grana preta rolando nas bolsas de apostas. Fiéis cegos gritando em êxtase diante dos pecados capitais: Amém!
O futebol pagão virou Cartolicismo.
Até que as crianças foram descobrindo que ninguém ressuscitou após o terceiro pênalti…
(Texto de Roberto Vieira)