Todos eles. Conheço todos. Vi cada um
deles crescer, viver e morrer aqui no bairro. Pedreiros, vendedores, garçons,
chapas, camelôs. Um deles foi alfaiate. E um ruço bexiguento que só bebia.
Foram morrendo. Uns moços; outros, de
velhice. De uns anos pra cá começaram a se reunir ali pra jogar bola.
Começa bem na hora que eu pego no
serviço. Abro o portão, entro, fecho, limpo os pingos de velas do chão, jogo
fora os restos de flores e vou pra guarita.
Precisa, sim, de vigia. Antes não
tinha. Mas andaram roubando de tudo aqui: azulejos, vasos, dentes, anéis,
sapatos, sumiu até corpo de mulher nova.
Eles não me veem. Ou fingem, não
importa. Fico ali fumando, de vez em quando grito “chuta!”, “cuidado!”, mas não
ouvem. Só dá um grande eco no escuro.
Passa carro às vezes, bem no meio
deles. No início eu me assustava, achava que ia atropelá-los, mas hoje dou
risada. Também moto, gente, bicicleta. São poucos, mas passam. E não veem nada.
Ainda bem. Iam se assustar. As
cabeças deles parecem máscaras: pálidas, sem pupilas, banguelas. Mas o corpo é
igual ao de quando eram vivos.
Sabe que é um futebol até bonito?
Leve, silencioso, sem briga.
O que me pergunto sempre é sobre a
bola. Como é que pode ter bola fantasma?
Sim, bola fantasma. Porque ninguém
que passa por aqui vê a bola. Só eles. Se fosse bola de verdade, o pessoal
veria, não?
Como eu vejo? Não sei. Mas vejo tudo.
Até a bola.
Meia-noite eles param. É a hora que
eu desligo tudo. Deito no colchonete. Espero amanhecer.
Não sei até quando.
Não deve demorar.
Mas até que é bom saber que logo,
logo vou ter essa peladinha pra jogar com eles.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)