Um falou do Brasil 4 x 1 Itália em
1970. Todos fizeram “ah!”, expressando aprovação e saudade. Ele tinha dez anos,
ficava ao lado da TV arrumando a antena e o controle das horizontais. A sala
cheia, os gritos, as bandeirinhas de papel, as pessoas na rua depois do jogo, o
sol, o domingo que nunca mais acabaria.
Outro estalou os dedos e citou Botafogo 6 x 0 Flamengo em 1972. Mas não
era botafoguense e sim flamenguista. Sete anos de idade, a camisa do time, a
dor de cada gol rasgando um pouco sua camisa e seu peito – logo era noite, o
choro em soluços, a escola no dia seguinte com as gozações que ainda ressoavam
na sua cabeça.
“Não tem comparação”, disse outro:
“Corinthians 1 x 0 Ponte Preta, em 1977, gol do Basílio”. Notou-se sua emoção
ao descrever o lance, os saltos nos chutes que antecederam o arremate fatal do
“pé-de-anjo”, o grito rouco, já era rapazinho, o pai até o deixara tomar um
copo de cerveja, ficou ouvindo rádio até não haver mais assunto, redesenhando
na mente, deitado, todo o lance.
Surgiram clássicos Atlético x Cruzeiro, Grêmio x Internacional, o Brasil 2
x 3 Itália de 1982 – que provocou lamentos, xingamentos e até um choro,
aplacado com um gole grande e uns tapinhas nas costas. E outros tantos jogos,
às vezes citados ao mesmo tempo, causando certa alegria em uns, tristeza em
outros, mas sempre com a aura de “que jogo, que jogo!”.
Só um, calado, apenas olhando,
bebericando, não citou nenhum. Notaram. “E você, nenhum jogo? Logo o mais
fanático por futebol? Não tem nenhum que você gostaria de voltar pra ver?”
Recostou-se, escorreu o corpo na cadeira, passou as duas mãos nos cabelos,
suspirou. Todos o olhavam.
“Tem”, respondeu. “Eu era pequeno, no
interior. Domingo de manhã fui pela primeira vez ver meu pai jogar na várzea.
Ao lado do meu tio, vi o poeirão subindo nas disputas de bola, os empurra-empurras,
os palavrões da torcida e dos jogadores, meu pai no banco, aguardando. Ele
olhava pra mim às vezes, dava tchau. Eu perguntava pro meu tio se ele não ia
jogar. ‘Vai, sim, já, já ele entra.’”
“Ganhei picolé, bala, biscoito de polvilho. O jogo já durava a vida
inteira. Até que o vi se levantar do banco, arrumar o meião, ficar à beira do
campo. Quando ele entrou meu coração virou um balão, subiu ao céu, planou sobre
o mundo todo. E o vi correndo, dominando a bola, chutando. Era meu pai. Deu um
carrinho que a torcida aplaudiu. Uma cabeçada que me pareceu que ele subira
mais alto que um super-herói. Era meu pai.”
Na mesa, todos em atenção total. Nem
mexiam nos copos.
“E acabou o jogo. Não sei quanto ficou. Sei que fui encontrá-lo. Ele
suado, a camisa com o número 3 nas costas, a chuteira velha, a barba rala, o
cheiro, a aliança apertando o dedo já mais gordo, os pelos nas pernas. Era meu
pai.”
Bebeu um gole.
“Nunca mais fui ver. Ele também parou de jogar logo depois. Só o via
depois com a roupa de trabalho: camisa, calça, sapato e a pastinha de vendedor.
A mesma com que foi enterrado – sem a pastinha, claro.”
Fechou os olhos. Todos calados. “Eu
queria voltar a esse jogo. Só pra gritar o que eu não gritei naquele dia.
Queria gritar alto: ‘É meu pai! É meu pai!”. Não sei por que não gritei. Fiquei
só olhando. Ele, às vezes, no campo, olhava pra mim. Sempre sonho que ele
esperava que eu gritasse. Mas não gritei.”
Olhou em volta, bateu na mesa com as duas mãos. “Agora já era. Não dá
mais.”
Uns segundos de silêncio.
Pediram a conta. Foram embora.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)