13 março 2019

IRE-1232

Derrota Suada
Mirrado, com o isopor cheio de picolé pendurado no pescoço, ia, obrigado pelo pai, ao barranco em que uns adultos e velhos viam o jogo.
Era quase uma pelada, camisas rotas, muitos descalços, regras próprias ("dois gols, muda o goleiro"), mas com certa solenidade. Entrada em fila, cumprimentos, às vezes um ignorado juiz, a bola escoiceando em meio a buracos, formigueiros, tufos de capim desenhando o arquipélago de areia e terra.
O sol, a umidade e o ar parado entornavam as misérias do público e as grudavam em seus rostos. E ajudavam na venda dos picolés: coco queimado, creme holandês, abacate, banana e nescau. Receitas do pai, feitos com a mãe no fundo de casa. A cinquenta centavos cada, saíam bem.
E rápido: sem embalagem, mal eram tirados do isopor já começavam a pingar e desmilinguir. Quase todos os clientes acabavam comprando ao menos dois. Só não faturava mais porque não aguentava o isopor maior, que ia com o irmão mais velho para a rua do comércio.
E também porque ali no barranco ele se distraía: do seu ponto dava pra ver a quadra do colégio. Os meninos de uniforme correndo entre as marcações das áreas, do meio de campo, das laterais, chutando contra as traves de ferro, todos de uniforme, todos do seu tamanho e da sua idade.
Esquecia de olhar o estoque, o pessoal ia pegando os picolés e deixando moedas e notas, mas sempre com uma surrupiada. O pai dava bronca: "Menino, cadê o resto do dinheiro?", e ele não sabia responder.
Tomava um cascudo, corria pra dentro, deitava-se no colchão pelando e chorava.
Não pelo cascudo, mas pelos meninos no colégio.
Queria jogar bola com eles, suar com eles, usar os mesmos kichutes, tomar água da torneira na parede, abraçar e ser abraçado na hora do gol.
Todo dia isso.
Até que cresceu, viajou, sumiu, os pais morreram, o irmão continua fazendo picolés.
Ele nunca mais foi visto. Nem ninguém notou seu desaparecimento.
Era como se o sol o tivesse derretido, miserável e frustrado, fazendo-o escorrer e desintegrar-se na terra do barranco, da estrada, do nada.
Não valendo nem cinquenta centavos.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)