Corria o ano da graça de 1968, ano
sem graça pra se viver. Sem pedir licença, surgiu um tal de AI-5. Aí sim,
tivemos muitos ais.
Meu pai tinha uma Kombi azul claro como as
manhãs de abril, que durante a semana fazia carretos e aos domingos levava o
glorioso esquadrão composto de filhos e sobrinhos para contendas nada
gloriosas. Ele gostava do risco.
Apesar de todos nossos argumentos
medrosos não teve jeito. Nos levou com sua Kombi para disputar um festival futebolístico, na favela mais
violenta de BH.
No trajeto, meu pai travestido de
treinador experiente, fumando um "Continental" sem filtro, ditava
ordens e arriscava conselhos táticos. Não prestei atenção nas estratégias. A
minha estratégia era sair vivo daquele covil.
Estacionou a Kombi numa ribanceira, bem em frente ao
campo. Trocamos de roupa ali mesmo, nosso vestiário improvisado. Amarrei o
cadarço da chuteira, dando volta no tornozelo, feito Cleópatra.
Súbito, no alto dos meus quinze anos
não senti mais medo. Pra quem queria guerrear contra ditadura, um futebolzinho
na favela era café pequeno. Relaxei e até meti um golaço de fora da área.
Só que no finalzinho do jogo, quando
o centroavante deles descia sozinho e célere pra empatar o jogo, meu pai não
teve dúvida: acelerou sua kombi e postou-se em frente ao gol. O centroavante tentou
colocar a bola entre as pernas ou entre os pneus da kombi. Não conseguiu. Ficou presa no cano
de descarga.
Alvoroço na favela mais violenta.
"No meio de carros rabo de peixe, rabo de saia e rabo de arraia, entramos
num rabo de foguete". Corremos pra dentro do nosso porto seguro.
O povo enfurecido do lado de fora,
balançava tanto a nossa embarcação que a placa "faz-se carreto" foi
parar na bandeirinha de córner. Vidros estilhaçados e bagaços de laranja, armas
pueris da época, em nossas cabeças suadas.
O nosso comandante fez bonito.
Engatou uma primeira, fez barulho, fez poeira, fez estrago e nos fez feliz.
Ganhamos mas não levamos. O troféu ficou na casa do adversário.
Meses depois, sábio e sensível como
todo presidente de clube de favela, achou que aquele troféu estava fora de
lugar. Convocou meu pai pra lhe entregar o troféu. Fui junto. Pai voltou ao
local do crime e foi aplaudido. Quem mais aplaudiu foi o centroavante que não
conseguiu atravessar a bola entre as rodas da Kombi. Somos amigos até hoje. O mais novo
dele é meu afilhado querido. Nunca deu um chute na bola. Nadador profissional
do Minas Tênis Clube. Nunca foi vaiado ou aplaudido.
Voltando pra casa, ele batucando no
volante um samba do Noel, cigarro no canto da boca, de vez em quando um olhar
pra mim, só pra se certificar que fez de novo o bem feito. Eu, com os braços
pra fora do carro, batendo na lataria e tentando acompanhar o samba. Não
consegui. Atravessei. Nunca consegui acompanhá-lo, só conseguia acariciar, com
meu olhar de adulto, o menino ao meu lado.
Outro dia, caminhando ao lado do
Mercado Central, deparei-me com uma Kombi
azul claro como as manhãs de abril. Será que é
ela? Não cheguei a conferir, não importava mais. Meu pai já havia nos deixado
há vinte anos. Senti pena do proprietário. Só carregava frutas e legumes.
Meu pai carregava sonhos e delírios.
(Texto de Ronaldo Guimarães, escritor, professor e pedagogo)