Mas, nem só de
flores vive quem se arrisca neste meio.
Uma derrota dói,
mas dói muito mais do que se imagina.
E a dor se
inicia ainda dentro da arena quando saímos de campo.
Sentado num
banco qualquer do vestiário parece que a vida se nega a passar.
Apesar do
movimento, ainda que triste, que nos cerca, há como que um bloqueio instantâneo
na memória e na percepção.
Len..ta...men…te
começamos a retirar do corpo as vestes que nos acompanharam naqueles 90 minutos
de jogo.
Sujas e
desconjuntadas, parecem trapos.
Eu mesmo sempre
me senti um farrapo — se é que podia me considerar alguma coisa naquele
momento.
A fronte caída e
os braços arqueados desnudavam liminarmente o estado de espírito.
Encaminho-me ao
chuveiro para, quem sabe, extirpar o dissabor instalado.
A água gelada
não produz grandes transformações.
Pouco a pouco o
silêncio se instala.
Olho para os
lados e vejo ninguém.
Todos haviam se
retirado sorrateiramente como a esconder certa vergonha e incompetência.
Vestindo-me,
relembro eventos anteriores de extrema felicidade e prazer.
O contraste
piora ainda mais o meu humor.
Reflito sobre as
incongruências que o cotidiano nos oferece com incômoda freqüência.
Avaliações
insanas e obcecadas.
Num dia somos
deuses do Olimpo e Eros é perene a nosso lado.
Já no outro nos
tornamos pessoas vis e descartáveis.
É muita
incoerência a nos desafiar.
A nos tocar
fundo na alma e mexer com nossos mais escondidos sentimentos.
É como se nos
descobrissem inevitavelmente.
Uma estranha
invasão. Que nos provoca, fere e mata um pouco a cada segundo.
Mas é de uma
riqueza tão profunda quanto dolorida.
No caminho de
casa tento esquecer os fatos recentes. Impossível.
Aquela bola que
cruzei poderia ter sido mais lenta, mais à frente ou um pouco mais alta.
Facilitaria a conclusão.
Meneio a cabeça.
Não há como modificar o que se passou.
Volto à
realidade.
Porta de casa,
passos largos — enfim no meu abrigo.
Ele há de me
proteger, saciar e aliviar. Procuro por companhia e nada. A solidão talvez seja
a melhor companheira neste instante. Estatelo-me no sofá. Bebo alguma coisa que
relaxe, me envolva e devolva o bem estar perdido. O líquido rarefeito invade a
garganta com sofreguidão. Não me seduz. Esqueço-o.
Aquele
lançamento no contra-ataque que tinha tudo para ser certeiro desviou na zaga.
Centímetros à direita ou à esquerda possibilitariam a perfeição. Um erro, um
único erro que poderia ter sido evitado. Sem ele teríamos tido mais chances e a
derrota talvez não acontecesse. E eu não estaria deste jeito.
Doces sonhos!
Corro em busca
de uma música que acalme e me encante. Infelizmente me sinto mais triste. Uma
convulsão sentimental ataca e expele algumas lágrimas fugidias que escorrem por
meu rosto cansado.
Aquela falta
batida na intermediária tinha o destino certo. Deveria cair à frente do goleiro
e escorregar por baixo de seu corpo. Sairíamos ganhando e nada nos tiraria a
vitória.
Puro devaneio!
Estou arrasado.
Mesmo com todo o esforço despendido, entregando-me às últimas consequências,
sinto-me um nada, um zero à esquerda. É como se me tivessem tirado a
consciência. Não consigo articular sequer um raciocínio lógico. O vazio
cerebral se instalou de forma absoluta.
Pego um livro e
não consigo construir suas imagens. Nada me consegue seduzir.
Resolvo tentar
dormir. Vagarosamente me encaminho para o leito. Deito-me. Fecho os olhos mas
as imagens não se afastam nem por um instante. Corroem-me por dentro. Vejo,
como se fosse real, um cruzamento vindo da direita. O jogo ainda estava
empatado. A bola vem limpa. Mato no peito ainda fora da área, driblo o primeiro
zagueiro que se aproxima, coloco no meio das pernas do segundo e me vejo cara a
cara com o goleiro. A multidão se levanta e grita. Uma onda de otimismo invade
meu ser. Escolho o canto. Desloco o arqueiro para um lado e toco mansamente para
o outro.
Neste momento — por
incrível que possa parecer é sempre assim —, um barulho ensurdecedor de um caminhão
de lixo na minha porta, me desperta.
Suado, agitado e
assustado, eu me vejo.
E tento
recuperar o gol que permaneceu no sonho interrompido.
Que nada!
Ele nunca
existiu. Só na vontade louca de modificar o que se passou. Irresponsavelmente
tento voltar a dormir.
Impossível.
É mais uma noite
de derrota que é infinita até a próxima vitória.
(Texto do
Doutor Sócrates)