Era num
espaçozinho ao lado da cantina, com uma dente-de-leite furada que ficava
guardada no quartinho de limpeza.
Uns seis ou oito
alunos sempre se juntavam e jogavam bobinho, controle, chute a gol (desenhado
com giz na parede) ou todos contra todos, simplesmente cada um por si
driblando, correndo, chutando.
Alegaram
barulho. Um vidro quebrado na sala do bedel. Atropelos de outros alunos. Duas
meninas reclamaram de terem sido atingidas pela bola – uma delas teve os óculos
entortados.
Proibiram. E
sumiram com a bola.
Ficaram perdidos
por uns dias. Mãos nos bolsos, conversa fiada, o intervalo sem graça, sem fim,
sem sentido.
Até que – nenhum
deles lembra por que nem como – começaram a jogar sem bola.
Como no “air
guitar”.
Todos os dias.
No mesmo local, ao lado da cantina.
Moviam-se,
tocavam, controlavam com os pés e a cabeça, driblavam, chutavam a gol, tudo
como se houvesse de fato a bola entre eles.
Não fingiam.
Jogavam mesmo.
Sabiam os
percursos da bola, as sequências, o balé que os lances produziam, as posições
do corpo, os olhares, a geometria dos passes, o novelo dos dribles, os pesos,
as medidas, tudo – de modo tão autêntico que faziam crer que, quando havia a
bola, ela era só coadjuvante, prescindível ao jogo que eles jogavam.
Transformavam o
ato real de jogar com a bola em mímica, ao avesso do jogo de verdade, que era
aquele que desenhavam somente com seus corpos e a bola invisível.
Os outros
ficavam olhando. Aliás, ficava todo o resto do colégio olhando. Alunos, professores,
funcionários e quem mais ali estivesse.
No início com
estranhamento. Rindo um pouco. Depois, com interesse.
Com o tempo, já
seguindo os lances, torcendo, orientando as jogadas, lamentando ou comemorando
um lance.
Às vezes até
protegiam o rosto e o corpo quando a bola imaginária aparentava vir na sua
direção.
E eles, jogando,
nem percebiam que eram objeto de observação.
Saíam suados,
comentando as jogadas, discutindo por um lance, vibrando.
Alguém na
diretoria achou que o transtorno estava maior do que quando eles usavam a bola.
Convenceu os demais e deixaram, cedinho, a velha dente-de-leite no pátio, no
espaçozinho ao lado da cantina.
No intervalo,
eles chegaram e a viram. Olharam-se.
A turma, enorme,
na assistência, muda, frustrada com o provável fim do show diário, começou a se
dispersar, cada um para seu canto.
Eles pegaram a
bola, começaram as embaixadas, os chutinhos, os dribles e retomaram seu antigo
jogo real.
Mas, numa parada
momentânea, para amarrar o tênis, um deles viu e apontou pra os outros: todo o
resto do colégio, em grupos grandes e pequenos, jogava o futebol imaginário que
eles haviam jogado nas últimas semanas.
Rodinhas,
bolinhos, duplas, times, correrias, meninas, meninos e funcionários, até o
bedel sozinho simulando embaixadas – o colégio todo praticava o jogo sem bola,
com movimentos, chutes, passes, dribles, trocas de passes e todo o repertório
que o corpo sabe usar para jogar bola, havendo ou não alguma para ser jogada.
Eles pararam,
deixaram a dente-de-leite no canto e ficaram assistindo aquelas dezenas de
jogadores enchendo o pátio com a dança e os sons do futebol.
Como num show em
que toda a plateia de repente começasse a tocar no ar a mesma música que o
artista solava sozinho no palco numa guitarra imaginária.
(Texto de Luiz Guilherme
Piva)