O ônibus do time teve que parar ali. Um povoado – de uma
ponta à outra, oito postes na estrada, com umas dez ruelas de cada lado.
Tinha caído uma
barreira adiante. O motorista entrou numa das vielas e parou. Em volta juntou
muita gente, sobretudo crianças.
Estavam acostumados com o movimento. Só que ninguém
parava. Apenas um ou outro, no quebra-molas, pra comprar queijo ou minhocuçu.
Para as crianças
aquilo era um espanto: o ônibus brilhante, grande, o escudo do time na lateral,
os jogadores como figurinhas de álbum olhando pelas janelas.
Dez da manhã. O jogo, na cidade a 200 quilômetros à
frente, seria à noite. Tempo calculado pra chegar, almoçar e treinar.
A criançada viu
os jogadores descendo. Era como um filme, uma tela enorme, um sonho.
Os jogadores e a comissão técnica ficaram conversando,
aguardando informações. Com a demora, aceitaram almoçar, em grupos de dois ou
três, nas casas dos moradores. Em cada uma as crianças entupiam a porta para
vê-los.
Chegou a notícia
de que a estrada só seria liberada no final da tarde, na conta certa de chegar
pro jogo.
O técnico e o preparador perguntaram se tinha campo.
Tinha. A criançada os guiou por entre as casas, pela trilha perto do riacho,
até chegarem ao local.
Era plano, todo
gramado, traves de ferro velhas, uns dois formigueiros.
E aí o espetáculo.
Os jogadores se
exercitando, correndo, batendo bola, chutando a gol.
Os goleiros de luvas, calções almofadados, joelheiras e
cotoveleiras.
As crianças
dentro do estádio.
Mais: dentro do jogo que só existia na televisão. Tinham
transposto a tela e não havia mais fronteira.
O mundo todo era
ali. O tempo sem fim era aquele.
O surdo do chute. O chiado na bola na grama. As travas
rinchando. O gongo da bola na trave – e o céu, o ar, o sol, os corações
marretando o peito, as nuvens, a bola, os heróis em desfile como enormes
alazões em órbita no universo.
De repente um
enorme clarão se instaurou.
Tudo explodiu em branco.
E nunca mais
elas viram nada.
Consertaram a estrada, o ônibus foi embora e de noitão
passou de volta com as crianças já dormindo.
Mas elas não se
lembram de nada depois do clarão.
Até hoje.
Pra onde elas
olham só veem uma luz cheia de sons: do chute, do quique, das defesas, do
gongo, do chiado, do relincho.
E assim será.
Elas nunca mais
verão a vida preenchendo a geografia entre o primeiro e o oitavo poste, as
ruelas, as casas e os seus próprios corpos.
Jamais voltarão do limiar que atravessaram, da dimensão em
que os jogadores e as bolas, por algumas horas, formaram uma galáxia da qual
elas para sempre acreditarão ser o centro.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)