25 março 2016

Prece do Galinheiro

Ó senhor das aves!
Ajude o nosso galinheiro.
É briga e bicada o dia inteiro.
Tem pena voando pra tudo que é lado.
O galo, coitado, está chocado.
Os penudos estão indo com tudo, rompendo até amizade.
Imploro por um pouco de serenidade.
Ó senhor dos galináceos!
Acalme o povo,
Desse jeito não vai ter ovo!
Envie bom senso e equilíbrio e,
Quem sabe, um pouco de milho.
Pois, olhando daqui do poleiro,
Todo mundo é seu filho.
Conceda paz para galos, galinhas e pintinhos também
E para todos os galinheiros, amém.
(Texto de Ivo Minkovicius)

22 março 2016

19 março 2016

17 março 2016

15 março 2016

Jogo Perfeito

Imaginava o jogo perfeito.
Dois times só de craques, todos executando suas funções no extremo da perfeição, acertando todos os passes e lançamentos, todos os dribles, cruzamentos, chutes, atacando e voltando, alternando posições, como duas companhias de balé se misturando no palco em articulada coreografia, se entremeando, aproximando, afastando, misturando, distribuindo-se, aglomerando-se, formando arranjos em torno da bola sem nunca ninguém errar nada.
Sabia que não daria certo. Porque os zagueiros também não falhariam. Nem os goleiros. Todos seriam espetaculares.
E, com isso, não haveria gols.
Seria um futebol maravilhoso, mas intransitivo.
O futebol conceitual. Platônico. Metafísico.
Mas sem gol.
E futebol sem gol não serve para nada.
Exceto para fruir na imaginação.
Mas era o que ele gostava.
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13 março 2016

De Calcanhar

Igualmente magro e alto, ele tinha visto uns lances do Sócrates e começou a dar passes de calcanhar. Errava feio (o passe e, muitas vezes, a própria bola), mas fazia o tendu elegante como o Doutor.
Mais lances ele via na TV, mais ele imitava. Pelo alto, rasteiro, pra frente, pra trás – às vezes, virava-se só pra executar o passe.
Errava todos. Travava o ataque. Matava as tabelas.
O pessoal da pelada foi se enchendo. Ele insistia.
Reclamavam. Nada.
Xingavam. Nem aí.
Ameaças. Seguia tentando.
Até que um dia ele conseguiu o espantoso.
Do meio de campo, de costas para o seu ataque, recebeu a bola, abriu as pernas e, sem virar a cabeça – afinal, era um bailarino –, de primeira, deu o passe de calcanhar certeiro qual uma tacada de sinuca.
A bola foi como um rastilho em meio aos adversários e encontrou o atacante lá na área se deslocando na cara do gol – foi só tocar e sair, com todo o time, atrás do autor do passe para abraçá-lo.
Mas ele, blasé, fez que não ligava. Recusou os abraços. Afastou-os com o olhar e os gestos severos.
E parou.
Nunca mais tentou o lance.
Ninguém entendeu.
Todos supunham que ele queria deixar imortalizado o lance. Como se qualquer novo erro viesse a esfarelar a obra-prima.
Mas não perguntavam temendo que ele voltasse com a mania.
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11 março 2016

Saudade Matadeira

A Saudade Mata A Gente
(Pena Branca & Xavantinho)
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Fiz meu rancho na beira do rio
Meu amor foi comigo morar
E nas redes nas noites de frio
Meu bem me abraçava pra me agasalhar
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Mas agora meu bem foi-se embora
Foi-se embora e não sei se vai voltar
A saudade nas noites de frio
Em meu peito vazio virá se aninhar
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A saudade é dor pungente, morena
A saudade mata a gente, morena
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09 março 2016

07 março 2016

Fim de Jogo

Jogavam todos os dias.
Quase sempre no campinho que depois virou igreja. Mas também num terreno inclinado perto do rio. E num terrão de uma fábrica fechada. Uma vez até no campo do time do bairro, invadido à noite: jogaram no escuro, só a lua e os postes do lado de fora, com o gozo da grama rente, as marcas de cal, as traves brancas e a gravidez da rede a cada gol.
Todos os dias.
Chuva, sol, barro, areia. Depois da aula, no início da noite, de manhã cedinho, na hora do almoço, quando desse. Iam se juntando, um falava pro outro, que avisava outro, que encontrava mais um, quando dava deixavam marcado pro dia seguinte, mas nem precisava.
Agora, olhando o computador, ele se lembra de quase tudo.
Muitos gols, muitas brigas, broncas dos pais, verrugas sangrando no joelho, pés cortados que geraram ínguas, o cheiro do suor na terra, a chuva domando o véu da poeira até o chão, as lascas de couro se soltando da bola, os córregos.
E o rosto de cada um.
Como um desfile de fotogramas acendendo e apagando rapidamente.
Um por um.
Lembra que paravam de jogar à medida que cresciam. Que os que iam ficando mais velhos iam deixando de comparecer e sumiam. Que ele era dos mais novos e ficou muito tempo – mas que também deixou de jogar enquanto outros ficavam.
Um golaço que todos elogiaram. Um frango de um amigo que quase os levou aos socos. Uma bola nova. A primeira vez de kichute. Vidros quebrados. Insolações. Água na mangueira ou na bomba.
Na frente do computador põe no Google os poucos nomes completos de que se lembra. Não acha nada – ninguém é conhecido o suficiente. Sem redes sociais – nem sabe mexer –, não tem outra forma de procurar.
Se lembrasse de outros nomes. Se morassem na mesma cidade. Se não tivessem se dispersado. Se não tivessem parado de jogar à medida que ficavam maiores.
Por quê não continuaram?
Bastava seguir jogando todos os dias.
Os dias e os anos teriam se passado. Estariam velhos do mesmo jeito que estão hoje. Alguns já teriam morrido como certamente ocorreu.
Mas todos saberiam onde cada um esteve todo esse tempo e onde cada um está agora.
Como sabiam quando jogavam. Quase sempre sem nem combinar – será que ainda tem lá a igreja?
E mesmo assim se encontravam jogavam e no dia seguinte jogavam e no dia seguinte de novo e no dia seguinte outra vez até que um ficava mais velho e não ia mas outro mais novo começava e todos seguiam jogando.
Quando é que a gente ficava velho e saía? Que momento da idade era o de sair? Quando sabiam disso?
Se tivesse uma lista telefônica da cidade. Será que existe lista? Mas, se existir, como arrumar uma lista telefônica de uma cidade pequena do outro extremo do país?
Quando é que os jogos pararam?
Quanto tempo mais duraram os jogos depois que ele saiu?
A tela do computador brilha fraca no seu rosto. É a única luz na noite da sala. Silêncio dentro e fora da casa.
Como naquela noite no campo.
Só que agora sozinho, sem gozo, sem bola, sem grama, sem rede.
Sem os companheiros das peladas.
Só ele.
Não.
Ele e o tempo.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)

05 março 2016

Milho Aos Pombos

Milho Aos Pombos
(Zé Geraldo)
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Enquanto esses comandantes loucos ficam por aí
Queimando pestanas organizando suas batalhas
Os guerrilheiros nas alcovas
Preparando na surdina suas mortalhas
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A cada conflito mais escombros
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos
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Entra ano, sai ano, cada vez fica mais difícil
O pão, o arroz, o feijão, o aluguel
Uma nova corrida do ouro
O homem comprando da sociedade o seu papel
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Quando mais alto o cargo maior o rombo
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos
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E eu dando milho aos pombos no frio desse chão
Eu sei tanto quanto eles se bater asas mais alto
Voam como um gavião
Tiro ao homem, tiro ao pombo
Quanto mais alto voam maior o tombo
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Eu já nem sei o que mata mais
Se o trânsito, a fome ou a guerra
Se chega alguém querendo consertar
Vem logo a ordem de cima:
Pega esse idiota e enterra!
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Todo mundo querendo descobrir seu ovo de Colombo
Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
Dando milho aos pombos...

03 março 2016

Plágio

“O plágio está na base de todas as literaturas, salvo da primeira, que, aliás, é desconhecida”
JEAN GIRAUDOUX, escritor francês (1882-1944)
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01 março 2016

Futebol Eterno

O ônibus do time teve que parar ali. Um povoado – de uma ponta à outra, oito postes na estrada, com umas dez ruelas de cada lado.
Tinha caído uma barreira adiante. O motorista entrou numa das vielas e parou. Em volta juntou muita gente, sobretudo crianças.
Estavam acostumados com o movimento. Só que ninguém parava. Apenas um ou outro, no quebra-molas, pra comprar queijo ou minhocuçu.
Para as crianças aquilo era um espanto: o ônibus brilhante, grande, o escudo do time na lateral, os jogadores como figurinhas de álbum olhando pelas janelas.
Dez da manhã. O jogo, na cidade a 200 quilômetros à frente, seria à noite. Tempo calculado pra chegar, almoçar e treinar.
A criançada viu os jogadores descendo. Era como um filme, uma tela enorme, um sonho.
Os jogadores e a comissão técnica ficaram conversando, aguardando informações. Com a demora, aceitaram almoçar, em grupos de dois ou três, nas casas dos moradores. Em cada uma as crianças entupiam a porta para vê-los.
Chegou a notícia de que a estrada só seria liberada no final da tarde, na conta certa de chegar pro jogo.
O técnico e o preparador perguntaram se tinha campo. Tinha. A criançada os guiou por entre as casas, pela trilha perto do riacho, até chegarem ao local.
Era plano, todo gramado, traves de ferro velhas, uns dois formigueiros.
E aí o espetáculo.
Os jogadores se exercitando, correndo, batendo bola, chutando a gol.
Os goleiros de luvas, calções almofadados, joelheiras e cotoveleiras.
As crianças dentro do estádio.
Mais: dentro do jogo que só existia na televisão. Tinham transposto a tela e não havia mais fronteira.
O mundo todo era ali. O tempo sem fim era aquele.
O surdo do chute. O chiado na bola na grama. As travas rinchando. O gongo da bola na trave – e o céu, o ar, o sol, os corações marretando o peito, as nuvens, a bola, os heróis em desfile como enormes alazões em órbita no universo.
De repente um enorme clarão se instaurou.
Tudo explodiu em branco.
E nunca mais elas viram nada.
Consertaram a estrada, o ônibus foi embora e de noitão passou de volta com as crianças já dormindo.
Mas elas não se lembram de nada depois do clarão.
Até hoje.
Pra onde elas olham só veem uma luz cheia de sons: do chute, do quique, das defesas, do gongo, do chiado, do relincho.
E assim será.
Elas nunca mais verão a vida preenchendo a geografia entre o primeiro e o oitavo poste, as ruelas, as casas e os seus próprios corpos.
Jamais voltarão do limiar que atravessaram, da dimensão em que os jogadores e as bolas, por algumas horas, formaram uma galáxia da qual elas para sempre acreditarão ser o centro.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)