07 março 2016

Fim de Jogo

Jogavam todos os dias.
Quase sempre no campinho que depois virou igreja. Mas também num terreno inclinado perto do rio. E num terrão de uma fábrica fechada. Uma vez até no campo do time do bairro, invadido à noite: jogaram no escuro, só a lua e os postes do lado de fora, com o gozo da grama rente, as marcas de cal, as traves brancas e a gravidez da rede a cada gol.
Todos os dias.
Chuva, sol, barro, areia. Depois da aula, no início da noite, de manhã cedinho, na hora do almoço, quando desse. Iam se juntando, um falava pro outro, que avisava outro, que encontrava mais um, quando dava deixavam marcado pro dia seguinte, mas nem precisava.
Agora, olhando o computador, ele se lembra de quase tudo.
Muitos gols, muitas brigas, broncas dos pais, verrugas sangrando no joelho, pés cortados que geraram ínguas, o cheiro do suor na terra, a chuva domando o véu da poeira até o chão, as lascas de couro se soltando da bola, os córregos.
E o rosto de cada um.
Como um desfile de fotogramas acendendo e apagando rapidamente.
Um por um.
Lembra que paravam de jogar à medida que cresciam. Que os que iam ficando mais velhos iam deixando de comparecer e sumiam. Que ele era dos mais novos e ficou muito tempo – mas que também deixou de jogar enquanto outros ficavam.
Um golaço que todos elogiaram. Um frango de um amigo que quase os levou aos socos. Uma bola nova. A primeira vez de kichute. Vidros quebrados. Insolações. Água na mangueira ou na bomba.
Na frente do computador põe no Google os poucos nomes completos de que se lembra. Não acha nada – ninguém é conhecido o suficiente. Sem redes sociais – nem sabe mexer –, não tem outra forma de procurar.
Se lembrasse de outros nomes. Se morassem na mesma cidade. Se não tivessem se dispersado. Se não tivessem parado de jogar à medida que ficavam maiores.
Por quê não continuaram?
Bastava seguir jogando todos os dias.
Os dias e os anos teriam se passado. Estariam velhos do mesmo jeito que estão hoje. Alguns já teriam morrido como certamente ocorreu.
Mas todos saberiam onde cada um esteve todo esse tempo e onde cada um está agora.
Como sabiam quando jogavam. Quase sempre sem nem combinar – será que ainda tem lá a igreja?
E mesmo assim se encontravam jogavam e no dia seguinte jogavam e no dia seguinte de novo e no dia seguinte outra vez até que um ficava mais velho e não ia mas outro mais novo começava e todos seguiam jogando.
Quando é que a gente ficava velho e saía? Que momento da idade era o de sair? Quando sabiam disso?
Se tivesse uma lista telefônica da cidade. Será que existe lista? Mas, se existir, como arrumar uma lista telefônica de uma cidade pequena do outro extremo do país?
Quando é que os jogos pararam?
Quanto tempo mais duraram os jogos depois que ele saiu?
A tela do computador brilha fraca no seu rosto. É a única luz na noite da sala. Silêncio dentro e fora da casa.
Como naquela noite no campo.
Só que agora sozinho, sem gozo, sem bola, sem grama, sem rede.
Sem os companheiros das peladas.
Só ele.
Não.
Ele e o tempo.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)