Quase sempre no campinho que depois virou igreja. Mas também
num terreno inclinado perto do rio. E num terrão de uma fábrica fechada. Uma
vez até no campo do time do bairro, invadido à noite: jogaram no escuro, só a
lua e os postes do lado de fora, com o gozo da grama rente, as marcas de cal,
as traves brancas e a gravidez da rede a cada gol.
Todos os dias.
Chuva, sol, barro, areia. Depois da aula, no início da
noite, de manhã cedinho, na hora do almoço, quando desse. Iam se juntando, um
falava pro outro, que avisava outro, que encontrava mais um, quando dava deixavam
marcado pro dia seguinte, mas nem precisava.
Agora, olhando o
computador, ele se lembra de quase tudo.
Muitos gols, muitas brigas, broncas dos pais, verrugas
sangrando no joelho, pés cortados que geraram ínguas, o cheiro do suor na
terra, a chuva domando o véu da poeira até o chão, as lascas de couro se
soltando da bola, os córregos.
E o rosto de
cada um.
Como um desfile de fotogramas acendendo e apagando
rapidamente.
Um por um.
Lembra que paravam de jogar à medida que cresciam. Que os
que iam ficando mais velhos iam deixando de comparecer e sumiam. Que ele era
dos mais novos e ficou muito tempo – mas que também deixou de jogar enquanto
outros ficavam.
Um golaço que
todos elogiaram. Um frango de um amigo que quase os levou aos socos. Uma bola
nova. A primeira vez de kichute. Vidros quebrados. Insolações. Água na
mangueira ou na bomba.
Na frente do computador põe no Google os poucos nomes
completos de que se lembra. Não acha nada – ninguém é conhecido o suficiente.
Sem redes sociais – nem sabe mexer –, não tem outra forma de procurar.
Se lembrasse de
outros nomes. Se morassem na mesma cidade. Se não tivessem se dispersado. Se
não tivessem parado de jogar à medida que ficavam maiores.
Por quê não continuaram?
Bastava seguir
jogando todos os dias.
Os dias e os anos teriam se passado. Estariam velhos do
mesmo jeito que estão hoje. Alguns já teriam morrido como certamente ocorreu.
Mas todos
saberiam onde cada um esteve todo esse tempo e onde cada um está agora.
Como sabiam quando jogavam. Quase sempre sem nem combinar
– será que ainda tem lá a igreja?
E mesmo assim se
encontravam jogavam e no dia seguinte jogavam e no dia seguinte de novo e no
dia seguinte outra vez até que um ficava mais velho e não ia mas outro mais
novo começava e todos seguiam jogando.
Quando é que a gente ficava velho e saía? Que momento da
idade era o de sair? Quando sabiam disso?
Se tivesse uma
lista telefônica da cidade. Será que existe lista? Mas, se existir, como
arrumar uma lista telefônica de uma cidade pequena do outro extremo do país?
Quando é que os jogos pararam?
Quanto tempo
mais duraram os jogos depois que ele saiu?
A tela do computador brilha fraca no seu rosto. É a única
luz na noite da sala. Silêncio dentro e fora da casa.
Como naquela
noite no campo.
Só que agora sozinho, sem gozo, sem bola, sem grama, sem
rede.
Sem os
companheiros das peladas.
Só ele.
Não.
Ele e o tempo.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)