Mas a dele, a que ele amava, o deixou.
Trocou-o pelo
centroavante do maior rival.
Todos achavam que sairia duelo, ou um tiro à sorrelfa, uma
surra encomendada, ao menos uma briga de rua.
O próprio
centroavante deixou de sair por um tempo, temendo a vingança.
Mas não. Ele entristeceu, chorou sozinho, perdeu o sono,
mas não fez nada.
Manteve-se nos
treinos e nos jogos. Com o mesmo garbo. Sorrindo do mesmo jeito para os fãs e
as fãs, agora mais esperançosas.
Até que veio o jogo entre eles. Decisão do campeonato.
A tensão durante
a semana cresceu a ponto de no domingo, no pequeno estádio, o silêncio se
impor: a charanga não tocou, não houve gritos, nem palmas pros times entrando,
nem vaias pros juízes.
Todos de olho nos dois.
Camisa 9. Camisa
1. Camisa 1. Camisa 9.
Eles não se olharam durante o aquecimento.
Sabiam que o
silêncio era a ansiedade pela cena que todos esperavam: eles haveriam de se
encontrar na área. Num escanteio, num cruzamento, ou num bate e rebate.
Mas no primeiro tempo, nada. O melhor time manteve-se no
ataque e encurralou o outro. Pressão, chutes, gols perdidos, jogadas pelo alto
e pelo chão, uma saraivada. Sem sucesso.
Zero a zero.
No segundo tempo, a mesma coisa. A torcida até já se
esquecia do duelo entre os dois. O drama do jogo se sobrepunha ao confronto
passional.
Faltando cinco
minutos parecia inevitável o gol do melhor time. O goleiro, lá atrás, seguia de
roupa limpa, sem qualquer lance que o tivesse testado. Mas...
Mas histórias como esta sempre têm um mas.
E o mas foi uma
bola roubada pelo adversário na defesa, tocada pro lateral-esquerdo, que, de
primeira, a passou pro meia, que a enfiou lisa, firme, rasteira, pra corrida do
centroavante.
O campo adversário todo livre.
O centroavante
partiu de seu campo e se viu sozinho, disparando em direção ao gol do rival.
Mesmo sem tocar na bola, correndo atrás dela, ele sabia,
pelas distâncias e velocidades, que chegaria nela antes do goleiro. Pouco
antes, quase juntos.
O goleiro
percebeu o mesmo, mas demorou um pouquinho a mais pra sair, deu um tempo para
que o centroavante a dominasse antes da meia-lua e entrasse na área.
Só então se moveu.
Desde o toque do
lateral para o meia o estádio pressentira os movimentos e recomeçara a
silenciar. Quando o meia enfiou, tudo ficou mudo. Dava pra ouvir os carros
passando na rua.
Nos segundos da arrancada do centroavante, nem era mais o
silêncio. Era o centro do redemoinho. A absoluta ausência de qualquer som.
Todos parados,
olhos abertos, bocas pendentes, mãos sem lugar.
Camisa 9. Camisa 1.
Os demais
jogadores ficaram onde estavam. Nenhum deles, dos dois times, ousou se mexer.
Só olhavam.
Camisa 1. Camisa 9.
O chiado na
grama da chuteira do centroavante correndo. Sua respiração.
A respiração do goleiro.
O centroavante
entrou na área e goleiro saiu, avançando firme.
A bola não era mais a bola.
A bola agora era
ela.
A ex do goleiro e atual do centroavante.
O corpo e o
rosto dela ali, nos pés do atacante, nos olhos do goleiro.
A bola era toda ela.
E ela era a bola
do jogo.
O que se deu foi de espantar.
O goleiro
ignorou a bola e voou com os pés no peito e no pescoço do centroavante.
Derrubou-o com tal violência que ele caiu fora da área.
Derrubou-o e se levantou rapidamente. Pôs-se de pé ao lado
do corpo caído, como o toureiro vigiando o estertor do animal.
Um oh varreu a
torcida. Um ai envergou os jogadores.
Mas e ela?
E a bola?
Antes de levar o golpe o centroavante havia dado um
toquinho de leve, para ajeitá-la, preparando o chute. Esse toquinho a fez ir se
movendo lenta, quase parando, em direção ao gol.
O goleiro não
olhou para trás. Ela ia sem forças, mas avançando até a linha fatal.
Nem o goleiro, nem os torcedores, nem os jogadores
repararam. Fixaram-se na cena do goleiro em pé ao lado do centroavante no chão.
O juiz,
assustado, começou a andar para o local para marcar o pênalti. Mas viu.
Só ele viu.
Viu que a bola
entrava de mansinho, cruzava a linha, rodava seu último giro, até atravessar inteira
a cal e parar dentro do gol, um milímetro depois da listra.
Ele apitou. Soou tão forte que fez com que todos
despertassem. Apontou para o centro do campo.
Gol.
Um a zero.
O goleiro,
derrotado, foi expulso. O centroavante, campeão, para o hospital.
Terminou o jogo.
Mas não a
história.
O centroavante e a mulher mudaram-se para outro estado.
Sumiram.
Só que anos
depois ele se desencantou e decidiu se separar.
Ela voltou para a cidade sob os olhos e ouvidos de todos.
Foi morar sozinha, trabalhar, refazer a vida. Mas.
Mas estas
histórias sempre têm mais de um mas.
E o outro mas é que um dia ela procurou o goleiro.
Tocou sua
campainha.
Ele abriu a porta. Olhou-a. Rememorou tudo.
Viu-a como se
ela de novo fosse a bola daquele lance.
Como se ela fosse de novo a bola do jogo.
E a porta fosse
a linha do gol.
Pensou que agora não poderia falhar. Que não poderia tomar
o mesmo gol outra vez.
Respirou fundo,
cerrou os olhos – e fechou a porta na cara dela.
Passou a tranca por dentro.
E nunca mais
saiu.
Só morto, semanas depois.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)