Mas isso basta.
Prestem atenção à minha voz. Olhem para a frente. Mas não de olhos abertos.
Assim é que não verão nada mesmo. Façam como eu: fechem os olhos. Tapem-nos com
as mãos. Pronto. Agora vocês conseguirão assistir ao jogo.
Já veem o campinho, certo? Os buracos, as descaídas, o
capinzal no fundo, o barro eterno num dos cantos. A bola velha, soltando lascas
de couro, meio murcha. E o bando de moleques.
Reparem bem. Não são estranhos. São vocês. Magrelos,
joelhos esfolados, pés encardidos, suor por todo o corpo. Correndo sem parar.
Misturando-se uns com os outros, com o mato, com o barro, brigando pela bola
como cães atrás de comida. Caem, rolam, pulam, chutam, brigam, riem, se
abraçam, trocam socos, falam alto.
Vejam a si mesmos quando meninos jogando bola. Pensem em
vocês agora. Parecem seres distintos, eu sei. Mas não é para se espantarem.
Algo ocorreu – sempre ocorre, e não há quem saiba dizer o que é – desde aqueles
jogos até hoje que tornou tudo e todos aparentemente tão diferentes. Por isso é
que vocês não se reconhecem. Mas agora, observando bem, já têm certeza de que
são vocês, certo?
Então. Vejam o
jeito de cada um. A maneira de dominar a bola, de chutá-la, de esbravejar,
driblar, dar passes, comemorar. Parece inacreditável, mas é assim que vocês
ainda fazem hoje. Eu sei que vocês não jogam mais bola. Mas é por isso que
estou lhes mostrando esse jogo. Para que percebam que é naquele campinho, com
aquela bola, com os traços e modos que vocês tinham quando eram crianças e
jogavam futebol que vocês forjaram o que são hoje.
Não falo de modos físicos. Nem de fracassos e sucessos.
Falo da tormenta ou da paz de espírito. Da dignidade ou da covardia. Da
respiração forte ou fraca. Do olhar altivo ou baixo. Da percepção ou não do
espaço e do tempo e do que fazem ao percorrê-los. Esses são os fundamentos
adquiridos nas peladas da infância e que os anos transformam em caráter.
Tudo isso está ali, no jogo à sua frente. Só que vocês
então não o sabiam. Muito menos o sabem hoje. E tampouco o saberão daqui por
diante. Porque assim que destaparem e abrirem os olhos tudo será esquecido. E o
que é invisível voltará a sê-lo.
Vocês continuarão cegos, lutando, felizes ou infelizes,
atrás de algo que não sabem o que é. Mas que provavelmente é voltar a jogar
aqueles mesmos jogos. Para ter a chance – impossível – de tomar consciência de
que ali se decidia o que viriam a ser ou deixar de ser hoje.
Agora chega.
Podem abrir os olhos.
Veem? Pois é. É isso mesmo. Nada.
Não vemos nada, não é?
Mas é normal que não vejamos.
Porque não há
mais nada para ver.
Texto de Luiz
Guilherme Piva, autor de “Eram
todos camisa dez” (Editora Iluminuras)