Na volta, se vencessem, a mesma coisa. Cantoria e
batucada. Ele, uma estátua. Assim continuava no bar o resto da tarde.
Mas, durante o
jogo, cantava. Serestas, sambas-canção. Clássicos românticos e boêmios. O jogo
todo.
Os adversários estranhavam. A torcida ao redor do campo,
também.
Mas com o passar
do jogo se acostumavam.
Não cantava alto. Nem baixo. Dava pra ouvir no campo quase
todo.
E a voz dele era
bonita. Um tenor macio, lírico.
Às vezes, a mesma música o jogo todo. Às vezes, uma em
cada tempo.
Ficava
repetindo, alheio aos gritos, reclamações, impropérios e falas dos demais
jogadores e da torcida.
Meio-campo clássico, parecia reger seus passos e passes
pelo andamento da melodia, pelos agudos e graves, pelas pausas.
E jogava muito.
Sem ele, o time era fraco. Com ele, dominava, impunha o ritmo, criava chances,
fazia gols, vencia quase sempre.
Como um maestro fazendo todos jogarem o melhor de si.
Não podia era
acontecer de ele esquecer um pedaço da letra.
Quando acontecia, era uma tragédia. Ele parava onde
estivesse e ficava repetindo a frase anterior da letra, coçava a cabeça, olhava
pro alto, fechava os olhos, sussurrava de novo o verso anterior, e nada.
O jogo seguia e
ele ficava parado onde estava.
Se lembrasse, retomava o jogo como se nada tivesse
acontecido. Se não, ficava ali – ninguém o tirava porque ele poderia se lembrar
a qualquer momento e isso mudaria o jogo.
Mas algumas
vezes embatucava no verso, que sumia e não voltava. E aí era o desastre. O time
desandava e perdia feio.
No começo era muito raro. Mas de uns tempos para cá vinha
acontecendo com mais frequência. Lá pelo meio do segundo tempo, músicas tantas
vezes cantadas, tantas vezes repetidas, falhavam.
E então a
tragédia: ele parado, coçando a cabeça, mexendo os lábios, os olhos pra dentro
e pro alto, repetindo o verso antecedente – e tome gol do outro time.
O que o pessoal começou a fazer foi aprender as músicas
que ele mais cantava. Todos se puseram a decorar a maioria delas. Depois do
treino, ensaiavam com o técnico, que distribuía as letras impressas para todos.
Eles iam pro
jogo com o papelzinho nos bolsos se precisassem colar.
De modo que, havendo a parada na canção, alguém por perto
já lhe soprava o verso faltante: “da mulher, pomba-rola que voou”, “me
acompanha o meu violão”, “mas tu não flertaste ninguém”, “que o meu lar é o
botequim”, “respeite ao menos meus cabelos brancos”, “jurar, aos pés do
onipotente”, e pronto, ele retomava e seguia, cantando e jogando.
O problema é que
agora ele surgiu com uma canção que ninguém conhece.
E a canta, a mesma, em todos os jogos. Os colegas prestam
atenção, tentam decorar, já pesquisaram trechos na Internet, mas nada. Só ele
sabe a letra, enorme, complicada, meio sem sentido.
Mas linda.
Todos ficam encantados.
Talvez seja a
mais bela de todas as que ele já cantou.
Será composição dele?
Não ousam
perguntar.
O fato é que, com a nova canção, ele tem jogado cada vez
melhor.
Com isso, são
jogos e jogos com vitórias seguidas – e muito samba na caminhonete e no resto
da tarde.
Mas todos com um medinho lá no fundo: essa, se ele
esquecer a letra, ninguém vai conseguir completar.
(Texto de Luiz
Guilherme Piva)