Quando começou a chover, estava três a zero pra eles. Três
bobeiras nossas – um timinho fraco daqueles, juntado no bairro, não tinha como
vencer o nosso.
A gente joga junto há um tempão. Você sabe. Não tem roça,
várzea, e até estádio mesmo, da região em que a gente não tenha jogado. E bem:
estávamos invictos havia meses.
Mas foram três bobeiras em dez minutos.
Fomos pra cima, pra massacrar.
Aí começou a chuva. Mas não começou fraquinha e depois
aumentou. Não. Foi uma pancada só, de uma vez. Uma enxurrada forte, grossa,
desabando do céu.
Parecia um basculante, não, mil basculantes de areia
entornando a carga em cima do campo.
Sumiu quase tudo da visão. A terra embaixo virou barro,
lama, poça, pântano. Cada passo afundava a perna até a canela.
Mas a gente seguiu. Parar significaria derrota.
Só que a chuva, a inundação, o mangue, tudo piorava
rapidamente.
Alguém deles gritou e pediu pra parar. Do nosso lado
gritaram que não. Que o jogo seguiria. Jogo é pra homem, parar é coisa de
maricas, essas coisas.
Mas nem era jogo mais. Era uma andança de zumbis no meio
do nada, se arrastando sem saber pra onde, caindo, enchendo a cara de barro,
engolindo sujeira espessa, os olhos e as orelhas entupidas daquela gosma.
Nem se via mais a bola. Na verdade, nem se sabia se ela
ainda estava em campo. Ninguém sabia de nada.
Foi aí que alguém gritou: “Quem tá com a bola?”.
Ninguém respondeu.
Juro que não sei como, nem pensei antes de falar, mas
resolvi gritar: “Tá comigo!”.
“Onde?”
Eu jogava na frente, e tinha ficado lá quando a chuva
começou.
“Aqui, na área, vou fazer o gol!”
“Faz logo, faz logo!”.
“Gol!”, gritei. “Gol!”
Escutei meu time vibrar. O outro time começou a reclamar
um com o outro: “Por que não marcou direito? Volta pra ajudar! Ô, frangueiro,
vai entregar, vai?”.
Vi que dava certo. Comecei a comandar: “Pessoal, vamos
virar!”.
A chuva agora era mais do que areia. Era cimento, pedra,
cal, tijolo, nos soterrando debaixo de um pesadelo de muitos andares. Todo
mundo se movendo a esmo, quase surdos com a barulheira das chicotadas da chuva,
os pés afundando, os esguichos, o movimento movediço de alucinados cegos na
escuridão encharcada.
Mantive a voz: “Isso, Matozin, ali na direita, o Sossô tá
livre! Boa! Cruza, Sossô, tô desmarcado! Beleza, bolão! Gol! Gol!”
Meu time percebeu, claro. E entrou no jogo. Cada um
cantava sua jogada: “Vai, Pirão! Cobre a esquerda, Zeto! Lança pro Jungo,
rápido!”. Era eu: “Gol! Gol! Gol!”.
Vibração. Gritaria.
O time deles, que estava se xingando sem parar, percebeu.
Quer dizer, um deles percebeu e gritou: “Três a três! Quem fizer ganha!”.
Animados com o domínio da situação, topamos: “Vamos lá.
Quatro acaba.”
Aí é que ocorreu o que eu não esperava. Rapidamente, no
meio do barulho dos pés no barro, do estrondo da catarata que se despedaçava
nas nossas cabeças, o carinha deles gritou: “Pênalti! Pênalti!”.
“O quê?”, gritei.
“Me puxaram na área, rasgaram minha camisa. É pênalti!”
Fiquei atordoado. Meu time também. Ninguém falava nada.
Não podíamos duvidar. Tentei pensar em alguma coisa, mas
não deu tempo. O cara anunciou: “Vou bater!”. Nosso goleiro, no embalo, mandou:
“Pode vir! Pode bater!”.
Bom, aí se deu a confusão. O jogador deles começou a
comemorar alto: “Gol! Gol! Gol!”. Mas, junto com ele, nosso goleiro, no mesmo
tom, dizia: “Peguei! Peguei! Peguei!” E se puseram a discutir aos berros.
“Pegou nada, é gol, tá lá dentro!” “Peguei sim, olha a bola na minha mão!”
Todo mundo passou a se xingar, mas sem se ver, sem ver
nada, falando e gesticulando no escuro, como se os olhos estivessem virados pra
dentro, como se estivéssemos debaixo da terra, no fundo do mar, dentro de uma
caverna ou de um poço.
Então a chuva começou a diminuir.
Foi se diluindo, enfraquecendo, aliviando, a claridade se
insinuando no meio dela, invadindo o campo – e de repente explodiu: abriu os
olhos de todos, o dia se escancarou, tudo estava claro, amarelo, branco, a luz
quente do sol nas cabeças.
E o que se viu foi todo mundo completamente enlameado,
como se usássemos armaduras, com os pés fundos na lama, alguns deitados, outros
sentados, meia dúzia fora do campo, agarrados a uma árvore.
Conferimos, contamos. Todos estavam lá.
Menos a bola. Demoramos a achá-la, depois de escavar o
campo todo.
Bom, e o jogo?
Ninguém passou recibo.
Ninguém falou nada.
Era como se tudo de fato tivesse acontecido.
Mas havia a questão do pênalti. Entrou ou o goleiro pegou?
Quem tocasse no assunto desmontaria tudo. A farsa estaria
desfeita.
Raciocinei rápido. Eram três gols inventados pra nós e um
só pra eles. Valia a pena. E nosso time era muito melhor. Propus: “Pessoal,
quatro a três. Agora que tá sol, vamos queda de cinco?”.
Todo mundo topou.
Mas não deu.
Nosso goleiro não aceitou de jeito nenhum.
Ficou indignado.
Juntou suas coisas e saiu reclamando: “Peguei o pênalti,
caramba! Peguei. E vocês dão gol?”. Parados, nós o vimos se afastar tirando a
lama do rosto e do corpo.
De longe ele ainda se virou e gritou: “Defendi,
entenderam? Defendi o pênalti! Se quiserem, joguem sozinhos!”.
E foi embora.
Aí, lógico, não deu mais. Acabou o jogo.
Foi assim que perdemos.
(Texto de Luiz
Guilherme Piva)