O estilo do jogador é a expressão de sua personalidade.
Veja-o em ação em campo. Compare com seu jeito de falar,
com seu comportamento e sua postura fora de campo, seu olhar, seus gestos.
É uma identidade só. A mesma persona dentro e fora do
gramado.
Pense no Garrincha, no Tostão, no Rivellino, no Ademir da
Guia, no Zico, no Romário, no Ronaldinho Gaúcho, no Neymar.
Mas também nos menos famosos.
E também nos de fora: Zidane, Maradona, Messi, Iniesta,
Cruijff, Cristiano Ronaldo.
Vá pensando e testando – é batata! Todos são a mesma coisa
dentro e fora do campo.
Menos um.
Pelé.
O que se vê em campo não é somente diferente do que se vê
fora: é completamente estranho, avesso, antípoda.
É outra espécie. Outro ser.
Fora, um indivíduo meio simplório, ingênuo.
Dentro de campo, porém, o que se vê é uma pantera, um
leão, um guepardo – feras em plena caça, dominando as savanas, as pradarias, as
florestas.
Os olhos saltados, a concentração, o arranque, a
objetividade, a força muscular, a gana de um animal impondo seu poderio sobre
as presas e o território.
Não há nada de um no outro.
Veja o lance contra o goleiro Mazurkiewicz em 1970,
certamente o mais belo e difícil da história das Copas – e talvez da história
do futebol.
A execução, em força e raciocínio, é a de um fenômeno da
natureza, rasgando o espaço e o tempo, impondo-se sobre tudo e todos.
Mas não só. Há ainda o que se dá depois do lance.
O gol não saiu e, diante do mundo bestificado,
impressionado, Pelé volta andando, coçando algo nos lábios ou nos dentes, sem
lamentos, sem surpresas, sem caretas, com a mesma altivez e naturalidade
ostentada durante todo o jogo.
O corpo e os membros rijos, em movimento pausado. Como o
predador que perdeu por pouco sua presa e se reposiciona para nova investida.
Só ele está tranquilo. Porque só ele sabe que aquilo é da
sua essência sobrenatural.
Então.
Agora pense no Pelé das entrevistas, das canções, das
declarações, da vida social, das campanhas publicitárias.
Não são o mesmo ser, definitivamente.
Mas ambos vivem suas existências próprias dentro do mesmo
corpo. Talvez como heterônimos um do outro, ao modo de Fernando Pessoa.
E talvez daí venha a distinção psicológica e de pronomes
que eles próprios usam para falar de seu oposto: Edson e Pelé.
Mas é mais do que isso, porque o Edson é de uma espécie. E
o Pelé, de outra.
Para nossa sorte, quem entrava em campo era o Pelé.
Fosse o Edson e talvez não passasse nas peneiras como um
meia-direita tímido e burocrático.
Em compensação, fosse o Pelé o que estivesse fora de
campo, provavelmente teríamos um Rei de verdade a imperar em vasta área do
planeta, com poder incontestável e milhões de súditos.
Não sei você, mas eu seria um deles.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)