15 maio 2019

IRE-1255

Acocorado na carroceria. E assim na beirada do campo – um terreno disforme cercado de mangueiras. Ali ele ficava com o canivete descascando a fruta e picando fumo.
Bota grossa, chapéu, os fiapos brancos vazando sobre as orelhas, o traço de bigode sobre o lábio, torcia calado pelo time dos amigos, todos muito mais novos – eram colegas de eito a semana toda.
Na volta, o Fargo ligado na manivela cuspia fumaça nas picadas e deixava os grupos em meio à poeira nas roças e casebres. Ele era o último, no pau-a-pique perto do córrego.
No outro domingo, a mesma coisa. Nem os mosquitos o faziam mover-se: canivete, manga, fumo e pito. De vez em quando uma bicada no copo de branquinha.
Até que um dia o chamaram pra bater um pênalti. No gol de baixo, no final da pirambeira. Final de jogo, vitória garantida, quiseram homenageá-lo.
Assustou-se. Estranhou. Puxaram-no. Foi.
De bota e chapéu, com as pernas arqueadas. Dobrou a calça até o joelho. O goleiro já estava combinado, e até uns moleques atrás das traves estavam a postos pra não deixar a bola ir longe.
Refugou, olhou pra trás, viu todos o incentivarem.
Correu como pôde e deu a bicuda. Não saiu forte, foi em cima do goleiro, mas ele desviou sem graça e a bola entrou.
Só que a bota voou longe, passou por cima do bambu que servia de travessão e caiu no mato atrás dos moleques.
Ele ficou ali, com os dedos cascudos de fora, vendo a bota sumir em parábola. O pessoal veio abraçá-lo pelo gol mas ele se virou, puxou o canivete e rosnou avisando:
– Se não acharem a bota, corto a barriga de um por um.
Ficaram até de noite procurando, se coçando nas folhas, espinhos e bichos. Ele, perto do gol, de cócoras e arma em punho, esperando.
O motorista do Fargo perdeu a paciência, rodou a manivela e foi embora com o caminhão tossindo espesso e embaçado.
Até que acharam. Ele a calçou, embainhou o canivete e se levantou.
Voltaram a pé, calados, desfazendo o grupo pelo caminho.
Ele seguiu sozinho o último trecho.
Deitou-se, tirou as botas e ficou olhando a que reaparecera.
Não tinha carinho nenhum por ela. Poderia tê-la deixado no mato, sem problema.
Mas com ela é que tinha feito o único gol da vida.
Não ia perdê-la por nada.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)