O diretor olhou pros internos. Magros, fracos,
pobres, debilitados de muitas formas físicas e psíquicas, ilhados pela idade
nas suas faltas e excessos de lembranças. A morte, voraz, lhes debulhava e moía
o que sobrava. Balançou a cabeça pros lados e respondeu:
-
Aqui é um asilo! Olhe para eles!
Uns mastigando nada, outros ouvindo longe, dois
olhando pra dentro. Sentados ou movendo-se sem sair do lugar. Radinho, bonés,
lenços, meias, gengivas, tosses, cuspidas. Nos seus contornos, a massa
invisível da atmosfera e do tempo: o apodrecimento.
-
Vai dar certo. Vamos tentar!
O diretor olhou de novo. Duvidava que
estivessem ali. Gesticulou um resmungo, traduzido como aceitação.
- O
senhor vai ver! Vai dar certo!
Tinha alguns de pijama e tênis rasgado. Um com
andador. Bengalas, algumas. Uns conseguiram calção ou ceroula. Muitos de
sandália ou chinelo. O que usava soro direto ficou no gol – sentado num
tamborete. Deu uns seis para um lado e uns oito pro outro, equilibrando número
e condição física.
Pátio
pequeno. Bola vazia pra não pular nem correr muito. Freiras, serventes,
cozinheiras, faxineiros e os que não jogaram ficaram nas escadas e cadeiras em
volta.
O enfermeiro dono da ideia no meio do jogo,
apitando e ajudando quando precisasse: pra evitar quedas, dominar uma bola mais
difícil, incentivar. Pegar, se caíssem, dentaduras e bengalas. Fazer – e
conseguiu – com que cada um tocasse ao menos uma vez na bola.
Tudo foi muito lento, andado, parado. Nem gol
saiu. Poucos chutes. De destaque, só um passe “de calcanhar”, mas sem querer,
com o andador – para aplausos de todos.
Não
repetiram mais a experiência. Por temor de acidentes e porque, avaliaram, na
prática, não houve jogo.
Isso para quem assistiu.
Porque
de noite, depois da sopa, não teve radinho nem tevê. Os que jogaram e os que
não jogaram ficaram na sala, em roda, falando, ouvindo, imaginando,
transbordando com gestos, olhos e palavras o que foi o jogo de verdade.
Mulheres, filhos, inimigos, patrões, parentes,
parceiros, retratos de avós, orfanatos, trabalhos, estradas. Polícia-e-ladrão
na escola. Tiro de Guerra. Pasta de pedidos. Caminhões. Cidades e roças. Um
terno. Bolas de gude. Frutas na relva. Cerveja gelada. Cheiro de couro. Tapa na
cara. Galinhada. Serrote nos troncos. Zona. Trilhos de trem. Cigarros sem
filtro. Salame. Rodeios. Pimenta. Cana aberta nos dentes. Faca na cinta.
Carimbos. Balcões. Botas. Tijolo, cimento, areia. Uma índia escura na fazenda.
Vidros da igreja. Sacos de farinha. Cavalo em pelo. Sim, senhor. Não, senhor. A
senhora quem sabe. Banda com tuba e pratos. Manivela. Cruz no morro. Brigas na
rua. Quermesse. Relógio, bicicleta, injeção, pedrada, esmeril, samambaias,
cachoeira, macumba, beterraba, vasilhames no tanque, chave de fenda, luvas,
cusparadas. E farofa com bacon. Bocha. Anzol com barulhinho. Azulejo de flor.
Rapé. Revista de sacanagem. Manteiga, ônibus, feno, oficina, chafariz, as
unhas, é pra já, às ordens, cicatriz, cobra de noite, tambor, vassourão,
rodoviária, caderno de caligrafia, a mãe que levou um doce, loterias, porrada
na arquibancada, o pai que deu um presente. Seu delegado, seu guarda, seu
doutor, os muques, o peito, a potência. E os filhos, todos, centenas, correndo,
gritando, com todas as idades ao mesmo tempo, entrelaçados ali entre eles,
chutando, fazendo gols e vindo para os abraços, empoleirando-se nas suas
costas, erguendo-os nos ombros, jogando-os para o alto.
Tudo
isso é que teve no jogo que eles contavam, debatiam, analisavam aos risos, às
falas, às mímicas, às palmas.
Os que assistiram é que não viram.
Não
sentiram os cheiros.
Não ouviram os barulhos.
Não
perceberam nada.
Não sabem o que perderam.
(Texto de Luiz Guilherme Piva, autor do livro
“Eram Todos Camisa Dez”)