Ele devia ter jogado futebol. Mas não. Nasceu com a
maldade e só viveu para ela. Moleque, punha passarinho vivo na bacia de água
quente; rapaz, roubava dos vizinhos; adulto, brigava, xingava, sumia.
No mesmo beco, os meninos jogando
bola e ele sozinho, não falava. Com a família, grande, pobre, a mãe velha e
quase surda, só aos gritos.
E assim foi.
Mais do que adulto, roubos maiores.
Prisões. Fugas. Tiros no peito, na barriga, no pescoço. Surras de polícia e de
bandido.
A magreza, os ex-dentes, as
cicatrizes, as desfigurações. Cirurgias, sangramentos, fomes e comas. A morte
tentava, mas não conseguia.
Até que, quase velho, voltou pra casa
da mãe, sozinha, mais do que velha, surda.
Ele e ela. Calado, abafada. Outros
meninos, como os antigos e os de sempre, jogando bola no beco. Ele não olhava.
Parou de roubar, de ser preso, de
apanhar, de levar tiro e facada. Nos cantos. Sem conversa. Sem nada.
A única coisa era, todo fim de tarde,
a pedido da mãe, ligar um disco de que ela gostava. Ela sentava e ouvia
inteiro, de olhos fechados. O volume no máximo.
Nem sabia se a mãe ouvia. O sol no
fim. Ele ali, ela lá. Ele em dó, ela em si.
Quando acabava o disco ela reabria os
olhos – e refechava os ouvidos.
Um dia, não abriu mais.
Então, o então.
Todos os dias seguintes, por dois
meses, ele ligou o mesmo disco. E o beco ouviu as músicas e o seu choro alto
como de um surdo gritando.
Todo dia.
Até morrer.
Sem nunca ter jogado bola.
Mas devia.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)