24 dezembro 2013

Pelada do Noel

Nesta época, por muitos anos, eles faziam a pelada do Papai Noel.
Enchiam a cara, se fantasiavam e iam de Kombi pro campo atrás da olaria.
Período infalível de chuva, a caminhada da estrada – a Kombi não se arriscava – até o campo era no barro.
Plóft nos blocos de lodo e de argila no sulco do círculo do cavalo.
O campo era a mesma coisa.
De botas, chinelos, descalços, magrelos, barrigudos, sem dentes, postiços – no final do jogo acabavam sendo uma coisa só, todos em gesso marrom, as armaduras meio secas meio pingando.
Mas a bola sempre tinha que ser nova, branquinha, envolta em papel celofane, imaculada como numa coroação.
Ninguém sabia o placar. Nem de que lado era. Eram bolos atrás da bola onde ela estivesse.
Sem lateral, sem escanteio, sem juiz, sem tempo, sem falta.
Só não valia mão. Mas quando ocorria tinham que se lembrar – ou definir naquela hora – de que time era o infrator.
Também não podia perder o gorro, preso com grampo, barbante, esparadrapo, fita isolante, durex.
Se ficasse sem ele, estava fora do jogo.
Senão, não era a pelada do Papai Noel.
Intervalos ocorriam sempre que alguém parava pra uma cachaça. Os outros vinham atrás.
E só acabava quando um número razoável, ao cair, já não se levantava sozinho.
Todo ano isso.
Voltavam à cidade num estado de dar medo, com moscas, capins, gravetos e objetos não conhecidos grudados nas múmias de lama.
Ninguém via graça naquilo.
Nem entendiam a razão de uma brincadeira que ninguém queria ver, uns marmanjos naquela nojeira.
A bola, agora imprestável, não voltava.
Ficava lá, no campo, com as cascas grossas de barro, se misturando à terra, nela se decompondo, se transfigurando.
Alguém, muitos anos depois, contando essa história num bar, interpretou que a tradição esquisita era uma espécie de missa.
E que a bola seria uma oferenda.
E que era desse jeito porque Natal só é bom quando a gente é criança.
E que eles não viam forma melhor de voltar à infância.
Por que era barata: a bola, na vaquinha, saía quase de graça.
Simbólica: porque viemos do barro e a ele voltaremos.
E sagrada: porque o futebol – a pelada – é a transcendência maior que os humanos podem experimentar.
Os que, na mesa, o ouviram, mandaram-no parar de conversa mole.
Que a tradição era só farra de bebuns.
Ergueram os copos, brindaram e disseram-se Feliz Natal.
Mas um deles, ao menos, eu sei que, apesar de zoar o amigo, ficou pensando nas peladas da infância.
E que o que ele achava do Natal quando era criança era muito parecido com elas.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)