12 dezembro 2014

Feito a Mão

Era velório, mas ele não continha o sorriso de orgulho – pela missão enfim cumprida, pelo produto e por atender a um ídolo.
O morto era o centroavante local, glória do cenário esportivo do município e microrregião, como estava na coroa de flores.
Adoecera longamente. Sabia-se o desfecho havia algum tempo.
Ele, que ali vira nascer e ali dera leito a tantos que morreram, tendo sido admirador do artilheiro, prometera o caixão à família.
De graça. O mais bonito. Trabalhado em marchetaria, mosaico de cubos, triângulos e sombras de sucupira, angelim, canela, parajú, bicuíba, cedro, mogno, cerejeira, gonçalo-alves, roxinho, jatobá, jequitibá, currupichá, marfim, angico, peroba e jacarandá, em tabuleiros, claro-escuros, torneamentos, no formão, na entalhadeira, no canivete, no sopro, na lixa, na flanela.
O forro de feltro e seda. As alças douradas. O vidrinho jateado do último três-por-quatro na tampa.
Com todo o capricho permitido pelo tempo da doença. Com todos os arremates, enfeites e detalhes que, a cada dia, a cada jogada rememorada, ele achava justo acrescentar.
Um gol decisivo, um rococó aqui.
Um lance heroico, um refinamento lá.
Os melhores recortes e retalhos, ripas e tábuas, ferpas, palitos, pontinhas, fiapos, de todas as madeiras que tinha.
Virou sua obra-prima.
E a chance de se recuperar da decepção sofrida, há quase cinquenta anos, no conto do José Cândido de Carvalho, quando, em igual empreitada, o doente se recuperou, causou-lhe prejuízo e decepção e, claro, mereceu seus desaforos e o despedaçamento do féretro no meio da praça.
Agora, não. Neste conto, ele tem a chance revivida na nova morte. E não só de um amigo, para satisfação particular, mas de um ídolo do pacato e ordeiro povo da municipalidade.
Ali na capela, no velório, sorrindo, notava os olhos na madeira, na cistina em que o centroavante jazia.
E sentiu o bem-estar geladinho que imaginou ser o mesmo que o artilheiro sentia quando o público o admirava.
Pensou que sua obra e a do jogador eram de igual dimensão, aparentadas, até. Ainda trocadilhou “primas” em silêncio, em cócega muda.
Ambos eram artistas.
Deviam ser sempre vistos e glorificados.
Resolveu pedir a palavra. Modestamente sugeriu o embalsamamento do artilheiro, com a camisa nove da agremiação citadina, enfatizou, dentro do humilde féretro por ele dado à luz, no saguão da Prefeitura ou da Igreja, ou na entrada do estadinho em que ele pontificara radiante em prol de nossas cores, tenho dito.
Houve uma marolinha de sussurros pra lá, que voltou nas mesmas amplitude e frequência pra cá, até ser parada pelo padre, que agradeceu e negou a proposta.
Deus do céu!
Foi um estalo. Um talho. Um golpe.
Agitou-se, suou, tossiu.
Quando saíam com sua obra e o morto, desesperou-se, correu, parou do lado, abriu a tampa, virou o caixão entornando o campeão na terra, gritou para que largassem as alças, vermelho, salivando, saiu arrastando o caixão xingando alto coisas que ninguém entendeu, até porque tiveram que se recompor e levar o artilheiro numa maca até a cova já aberta ali perto.
Guardou o caixão no depósito, imune a poeira e sol.
Está lá, à espera de outro conto, de outro contista, que o deixe terminar a história como merece.
Pra mulher diz que centroavante sempre aparece outro. Caixão como aquele, não.
E contista, conclui, é o que não falta.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)