19 janeiro 2016

Futebol Imaginário

Proibiram o bate-bola do intervalo.
Era num espaçozinho ao lado da cantina, com uma dente-de-leite furada que ficava guardada no quartinho de limpeza.
Uns seis ou oito alunos sempre se juntavam e jogavam bobinho, controle, chute a gol (desenhado com giz na parede) ou todos contra todos, simplesmente cada um por si driblando, correndo, chutando.
Alegaram barulho. Um vidro quebrado na sala do bedel. Atropelos de outros alunos. Duas meninas reclamaram de terem sido atingidas pela bola – uma delas teve os óculos entortados.
Proibiram. E sumiram com a bola.
Ficaram perdidos por uns dias. Mãos nos bolsos, conversa fiada, o intervalo sem graça, sem fim, sem sentido.
Até que – nenhum deles lembra por que nem como – começaram a jogar sem bola.
Como no “air guitar”.
Todos os dias. No mesmo local, ao lado da cantina.
Moviam-se, tocavam, controlavam com os pés e a cabeça, driblavam, chutavam a gol, tudo como se houvesse de fato a bola entre eles.
Não fingiam. Jogavam mesmo.
Sabiam os percursos da bola, as sequências, o balé que os lances produziam, as posições do corpo, os olhares, a geometria dos passes, o novelo dos dribles, os pesos, as medidas, tudo – de modo tão autêntico que faziam crer que, quando havia a bola, ela era só coadjuvante, prescindível ao jogo que eles jogavam.
Transformavam o ato real de jogar com a bola em mímica, ao avesso do jogo de verdade, que era aquele que desenhavam somente com seus corpos e a bola invisível.
Os outros ficavam olhando. Aliás, ficava todo o resto do colégio olhando. Alunos, professores, funcionários e quem mais ali estivesse.
No início com estranhamento. Rindo um pouco. Depois, com interesse.
Com o tempo, já seguindo os lances, torcendo, orientando as jogadas, lamentando ou comemorando um lance.
Às vezes até protegiam o rosto e o corpo quando a bola imaginária aparentava vir na sua direção.
E eles, jogando, nem percebiam que eram objeto de observação.
Saíam suados, comentando as jogadas, discutindo por um lance, vibrando.
Alguém na diretoria achou que o transtorno estava maior do que quando eles usavam a bola. Convenceu os demais e deixaram, cedinho, a velha dente-de-leite no pátio, no espaçozinho ao lado da cantina.
No intervalo, eles chegaram e a viram. Olharam-se.
A turma, enorme, na assistência, muda, frustrada com o provável fim do show diário, começou a se dispersar, cada um para seu canto.
Eles pegaram a bola, começaram as embaixadas, os chutinhos, os dribles e retomaram seu antigo jogo real.
Mas, numa parada momentânea, para amarrar o tênis, um deles viu e apontou pra os outros: todo o resto do colégio, em grupos grandes e pequenos, jogava o futebol imaginário que eles haviam jogado nas últimas semanas.
Rodinhas, bolinhos, duplas, times, correrias, meninas, meninos e funcionários, até o bedel sozinho simulando embaixadas – o colégio todo praticava o jogo sem bola, com movimentos, chutes, passes, dribles, trocas de passes e todo o repertório que o corpo sabe usar para jogar bola, havendo ou não alguma para ser jogada.
Eles pararam, deixaram a dente-de-leite no canto e ficaram assistindo aquelas dezenas de jogadores enchendo o pátio com a dança e os sons do futebol.
Como num show em que toda a plateia de repente começasse a tocar no ar a mesma música que o artista solava sozinho no palco numa guitarra imaginária.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)