01 março 2016

Futebol Eterno

O ônibus do time teve que parar ali. Um povoado – de uma ponta à outra, oito postes na estrada, com umas dez ruelas de cada lado.
Tinha caído uma barreira adiante. O motorista entrou numa das vielas e parou. Em volta juntou muita gente, sobretudo crianças.
Estavam acostumados com o movimento. Só que ninguém parava. Apenas um ou outro, no quebra-molas, pra comprar queijo ou minhocuçu.
Para as crianças aquilo era um espanto: o ônibus brilhante, grande, o escudo do time na lateral, os jogadores como figurinhas de álbum olhando pelas janelas.
Dez da manhã. O jogo, na cidade a 200 quilômetros à frente, seria à noite. Tempo calculado pra chegar, almoçar e treinar.
A criançada viu os jogadores descendo. Era como um filme, uma tela enorme, um sonho.
Os jogadores e a comissão técnica ficaram conversando, aguardando informações. Com a demora, aceitaram almoçar, em grupos de dois ou três, nas casas dos moradores. Em cada uma as crianças entupiam a porta para vê-los.
Chegou a notícia de que a estrada só seria liberada no final da tarde, na conta certa de chegar pro jogo.
O técnico e o preparador perguntaram se tinha campo. Tinha. A criançada os guiou por entre as casas, pela trilha perto do riacho, até chegarem ao local.
Era plano, todo gramado, traves de ferro velhas, uns dois formigueiros.
E aí o espetáculo.
Os jogadores se exercitando, correndo, batendo bola, chutando a gol.
Os goleiros de luvas, calções almofadados, joelheiras e cotoveleiras.
As crianças dentro do estádio.
Mais: dentro do jogo que só existia na televisão. Tinham transposto a tela e não havia mais fronteira.
O mundo todo era ali. O tempo sem fim era aquele.
O surdo do chute. O chiado na bola na grama. As travas rinchando. O gongo da bola na trave – e o céu, o ar, o sol, os corações marretando o peito, as nuvens, a bola, os heróis em desfile como enormes alazões em órbita no universo.
De repente um enorme clarão se instaurou.
Tudo explodiu em branco.
E nunca mais elas viram nada.
Consertaram a estrada, o ônibus foi embora e de noitão passou de volta com as crianças já dormindo.
Mas elas não se lembram de nada depois do clarão.
Até hoje.
Pra onde elas olham só veem uma luz cheia de sons: do chute, do quique, das defesas, do gongo, do chiado, do relincho.
E assim será.
Elas nunca mais verão a vida preenchendo a geografia entre o primeiro e o oitavo poste, as ruelas, as casas e os seus próprios corpos.
Jamais voltarão do limiar que atravessaram, da dimensão em que os jogadores e as bolas, por algumas horas, formaram uma galáxia da qual elas para sempre acreditarão ser o centro.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)