10 maio 2016

A Bola do Jogo

Ele era o astro do melhor time da cidade. Goleiro, alto, forte, galã, admirado por todos, desejado pelas mulheres.
Mas a dele, a que ele amava, o deixou.
Trocou-o pelo centroavante do maior rival.
Todos achavam que sairia duelo, ou um tiro à sorrelfa, uma surra encomendada, ao menos uma briga de rua.
O próprio centroavante deixou de sair por um tempo, temendo a vingança.
Mas não. Ele entristeceu, chorou sozinho, perdeu o sono, mas não fez nada.
Manteve-se nos treinos e nos jogos. Com o mesmo garbo. Sorrindo do mesmo jeito para os fãs e as fãs, agora mais esperançosas.
Até que veio o jogo entre eles. Decisão do campeonato.
A tensão durante a semana cresceu a ponto de no domingo, no pequeno estádio, o silêncio se impor: a charanga não tocou, não houve gritos, nem palmas pros times entrando, nem vaias pros juízes.
Todos de olho nos dois.
Camisa 9. Camisa 1. Camisa 1. Camisa 9.
Eles não se olharam durante o aquecimento.
Sabiam que o silêncio era a ansiedade pela cena que todos esperavam: eles haveriam de se encontrar na área. Num escanteio, num cruzamento, ou num bate e rebate.
Mas no primeiro tempo, nada. O melhor time manteve-se no ataque e encurralou o outro. Pressão, chutes, gols perdidos, jogadas pelo alto e pelo chão, uma saraivada. Sem sucesso.
Zero a zero.
No segundo tempo, a mesma coisa. A torcida até já se esquecia do duelo entre os dois. O drama do jogo se sobrepunha ao confronto passional.
Faltando cinco minutos parecia inevitável o gol do melhor time. O goleiro, lá atrás, seguia de roupa limpa, sem qualquer lance que o tivesse testado. Mas...
Mas histórias como esta sempre têm um mas.
E o mas foi uma bola roubada pelo adversário na defesa, tocada pro lateral-esquerdo, que, de primeira, a passou pro meia, que a enfiou lisa, firme, rasteira, pra corrida do centroavante.
O campo adversário todo livre.
O centroavante partiu de seu campo e se viu sozinho, disparando em direção ao gol do rival.
Mesmo sem tocar na bola, correndo atrás dela, ele sabia, pelas distâncias e velocidades, que chegaria nela antes do goleiro. Pouco antes, quase juntos.
O goleiro percebeu o mesmo, mas demorou um pouquinho a mais pra sair, deu um tempo para que o centroavante a dominasse antes da meia-lua e entrasse na área.
Só então se moveu.
Desde o toque do lateral para o meia o estádio pressentira os movimentos e recomeçara a silenciar. Quando o meia enfiou, tudo ficou mudo. Dava pra ouvir os carros passando na rua.
Nos segundos da arrancada do centroavante, nem era mais o silêncio. Era o centro do redemoinho. A absoluta ausência de qualquer som.
Todos parados, olhos abertos, bocas pendentes, mãos sem lugar.
Camisa 9. Camisa 1.
Os demais jogadores ficaram onde estavam. Nenhum deles, dos dois times, ousou se mexer. Só olhavam.
Camisa 1. Camisa 9.
O chiado na grama da chuteira do centroavante correndo. Sua respiração.
A respiração do goleiro.
O centroavante entrou na área e goleiro saiu, avançando firme.
A bola não era mais a bola.
A bola agora era ela.
A ex do goleiro e atual do centroavante.
O corpo e o rosto dela ali, nos pés do atacante, nos olhos do goleiro.
A bola era toda ela.
E ela era a bola do jogo.
O que se deu foi de espantar.
O goleiro ignorou a bola e voou com os pés no peito e no pescoço do centroavante. Derrubou-o com tal violência que ele caiu fora da área.
Derrubou-o e se levantou rapidamente. Pôs-se de pé ao lado do corpo caído, como o toureiro vigiando o estertor do animal.
Um oh varreu a torcida. Um ai envergou os jogadores.
Mas e ela?
E a bola?
Antes de levar o golpe o centroavante havia dado um toquinho de leve, para ajeitá-la, preparando o chute. Esse toquinho a fez ir se movendo lenta, quase parando, em direção ao gol.
O goleiro não olhou para trás. Ela ia sem forças, mas avançando até a linha fatal.
Nem o goleiro, nem os torcedores, nem os jogadores repararam. Fixaram-se na cena do goleiro em pé ao lado do centroavante no chão.
O juiz, assustado, começou a andar para o local para marcar o pênalti. Mas viu.
Só ele viu.
Viu que a bola entrava de mansinho, cruzava a linha, rodava seu último giro, até atravessar inteira a cal e parar dentro do gol, um milímetro depois da listra.
Ele apitou. Soou tão forte que fez com que todos despertassem. Apontou para o centro do campo.
Gol.
Um a zero.
O goleiro, derrotado, foi expulso. O centroavante, campeão, para o hospital.
Terminou o jogo.
Mas não a história.
O centroavante e a mulher mudaram-se para outro estado. Sumiram.
Só que anos depois ele se desencantou e decidiu se separar.
Ela voltou para a cidade sob os olhos e ouvidos de todos. Foi morar sozinha, trabalhar, refazer a vida. Mas.
Mas estas histórias sempre têm mais de um mas.
E o outro mas é que um dia ela procurou o goleiro.
Tocou sua campainha.
Ele abriu a porta. Olhou-a. Rememorou tudo.
Viu-a como se ela de novo fosse a bola daquele lance.
Como se ela fosse de novo a bola do jogo.
E a porta fosse a linha do gol.
Pensou que agora não poderia falhar. Que não poderia tomar o mesmo gol outra vez.
Respirou fundo, cerrou os olhos – e fechou a porta na cara dela.
Passou a tranca por dentro.
E nunca mais saiu.
Só morto, semanas depois.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)