21 abril 2014

Querido Locutor

A rádio só pegava ali na cidade mesmo. A cadeira na laje em cima da portaria, um moleque puxava os fios até a Kombi do eletricista na rua – que, com umas antenas e uns botões, estopa, alicate, óleos e molas, punha a narração pra funcionar.
Jogadores, torcedores e transeuntes ouviam tudo ao vivo. Mas em todos os cantos a voz chiada e tremida juntava grupos nas casas, nas lojas, nas vendas, nos postos – e, a cada menção, os tapinhas nas costas, os sorrisos, as mãos em taça nas mandíbulas abertas.
Os parentes dos jogadores a comprovar sua glória. Os amigos a salivar as saudações do narrador. Os anunciantes a entrever as ruas cheias de neons sonoros.
O speaker caprichava. Era um rapaz magrelo, que repetia umas poucas expressões dos locutores famosos em meio aos milhares de citações de todos os jogadores, amigos, autoridades e anunciantes.
Sucesso total.
Num domingo de Páscoa, porém, jogo festivo, o padre abriu o evento, na tribuna o prefeito e a família, a potência do som aumentada: mais fios, mais antenas e botões e, novidade maior, caixas de som nos quatro cantos do alambrado!
“Abrem-se as cortinas do espetáculo!”
Aquilo era mais emocionante do que o jogo.
Não deu cinco minutos, o chiado e o zunido vieram fortes. Um estalo assustou todo mundo.
Mas eis que os barulhos sumiram e a voz ficou clara, redonda, enlevada.
Só que era um curto-circuito num dos fios perto da Kombi, o eletricista em desespero porque ia dar pane em tudo, o narrador sem perceber seguiu seu trabalho (“Neca passa pro Elpídio, que bola bola!, Elpídio, dez é a camisa dele, a camisaria Paris é a que tem os melhores produtos com os menores preços”), o eletricista fez uma gambiarra malfeita e gerou uma onda de energia no sentido Kombi-microfone (“no mercado Céu Azul tem de tudo, e um abraço pra família Miranda, no Paraíso Alto, aquele café da Dona Mércia não tem igual, o Tecão do Sindicato, pro Seu Lima, da Funerária Recomeço, minha mensagem de amizade”) e chegou às mãos do speaker como um coice elétrico (“Elpídio, de primeira, saudamos principalmente o senhor prefeito e a sua senhora, a quem enviamos nossa mensagem especial…”), aí a descarga de alta voltagem colou sua mão no microfone, fez seu corpo sacudir de dor, e os palavrões saíram gritados, em série – “PQP! C…! Vai tomar no …! FDP!” – e repetiam-se sem parar.
O jogo parou. Os torcedores e jogadores olhavam pra cima. Nas casas, lojas, postos, mesmo na Casa Paroquial tinha gente ouvindo, mãos em leque na boca, um pavor.
Até que o eletricista conseguiu. O microfone parou de tremer. O speaker, sem lucidez, branco, fraco, tonto. Vendo os jogadores parados, e sem se dar conta do que se passara, fez a saudação final: “aqui se encerra nossa jornada esportiva dominical, fecham-se as cortinas do espetáculo!”.
A essa altura o cara da Kombi e o menino dos fios já tinham sumido. Ele respirou um pouco, recobrou as forças e, meio ausente, desceu da laje.
E sorriu, imaginando que brilhara: na sua frente, como nunca antes ocorrera, havia uma multidão.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)