20 julho 2014

Catimbeiro

O negócio dele é fazer cera.
Só entra no fim, quando o time está ganhando e precisa segurar o jogo.
Orgulha-se: “administro a partida!”, diz, como quem apresenta uma profissão ou cargo complexo.
Demoras na cobrança de faltas e laterais, quedas com dores, empurra-empurra, reclamações, toquinhos, paradas para arrumar as meias e as chuteiras, simulações – a coleção completa.
Usa com enorme competência as expressões e os gestos de quem encarna os personagens e as situações.
Aliás, tal como um ator, prepara-se muito. Ao longo da semana ensaia cenas que podem ser usadas. Muitas vezes divulga entre conhecidos que é dúvida por conta de uma contusão – criando veracidade para atendimentos médicos do domingo.
Nem participa com os demais de toda a preparação normal. Faz com eles o aquecimento, o dois toques, um pouquinho do coletivo. Depois reúne uns auxiliares e começa o ensaio: trombadas, gritos, socos, faltas de ar, tonturas, caminhadas arrastadas, toquinhos inúteis pra trás e pros lados.
Chega a crer em muitas das falsas contusões que sofre nos jogos – a ponto de alguns atendimentos médicos urgentes terem se realizado de fato. Só na hora dos exames é que ele e o doutor se lembram.
“Uma vez administrei uma partida histórica…”, e enche de detalhes e orgulho a narrativa pros amigos.
“Quando eu comecei não era fácil…”.
“Meu recorde foram 37 minutos de bola parada, somando tudo – e entrei quando faltavam 20 pra acabar o jogo!”, os olhos dos ouvintes famintos, lábios pendentes.
“Já veio gente de fora pra eu preparar”.
“Pus a bola debaixo do braço e…”.
“Um juiz chegou a me visitar na segunda pra ver se eu estava bem”.
“Cicatrizes, hematomas – acho que é psicológico, meu trabalho é muito verdadeiro”.
“Fora goleiro, não escolho posição”.
E não se limita aos truques clássicos.
Já vomitou em campo; iniciou diálogo com o juiz fingindo transtorno grave (“por favor, que jogo é esse?” e, depois da resposta, “mas é futebol, né?”), o que fez a arbitragem parar tudo, assustada; agarrou-se ao bandeirinha babando no seu ombro por causa de “tontura”; caiu junto com o goleiro adversário dentro do gol e produziu um grande enredamento duplo que exigiu chamar especialistas para soltá-los; furou bolas com estiletes até o jogo acabar por falta delas; fingiu intoxicar-se com a cal numa queda no meio de campo; sofreu cegueira momentânea; combinou com um amigo para atender ao celular no alambrado e chamá-lo alegando que a mãe passava mal: ele atendeu, falou, chorou, os adversários e árbitros o consolaram até que ele recusou a proposta de adiamento da partida: “sou profissional, o jogo tem que continuar”, disse aos soluços; jogou insetos e larvas no gramado para enchê-lo de quero-queros; num ataque perigoso do oponente, deu uma cutelada no pescoço do seu próprio goleiro, que caiu agonizando e a jogada foi paralisada.
Um artista.
Ou, sua própria avaliação, um gênio
Acha que um dia vão reconhecer seu talento à altura.
Um busto, medalhas com seu rosto, nome de sala, alguma coisa.
Mas o que ele mais quer é outra coisa.
Seu sonho é, uma vez só ao menos, iniciar um jogo. Noventa minutos para administrar, reger, comandar, fazendo uso do largo repertório conforme cada situação, ditar o andamento, o tom, o enredo.
O astro central. Do começo ao fim. O maestro. Orquestra e público ao seu controle.
Aposta que quase não haveria jogo. Que tudo se arrastaria sem que nada importante acontecesse.
No apito final, todo mundo estaria absolutamente limpo, seco, inteiro, descansado.
Só ele um caco, estropiado, sujo, marcado, suado, mancando, roxo, arranhado, rasgado, sem fôlego, cuspindo, apoiado nos ombros do médico e do massagista e segurando, realizado, o Ipad de melhor em campo.
Não duvido.
(Texto de LUIZ GUILHERME PIVA)