16 julho 2014

Complexo de Vira-lata

Amigos, vocês passaram o tempo todo da Copa falando de mim: Nelson Rodrigues pra cá, pra lá…
Antes eu era o pornográfico, o reacionário, agora virei técnico de futebol. E me citavam. Todos diziam que tinha acabado o nosso “complexo de vira-lata”. Mas esse complexo que eu descobri pode existir também ao avesso (Freud nem me olha aqui no céu, com uma inveja danada). Mas ele não é apenas o pavor diante dos estrangeiros, a cabeça baixa, o “sim, senhor”, a alma de contínuo. Não.
Esse complexo aparece na submissão à Fifa, lambendo-lhe os pés como cachorrinhos gratos, nas arenas grã-finas. O vira-lata estava ali. Podemos botar uma fitinha cor-de-rosa no vira-lata que ele continua sendo um legítimo vira-lata, cheirando postes e abanando o rabo.
Para nossos jogadores ricos e famosos, o Brasil é a vaga lembrança da infância pobre, humilhada. O país virou um passado para os plásticos negões falando alemão, todos de brinco e com louras vertiginosas. Não são maus meninos, ingratos, não, mas neles está ausente a fome nacional “por um prato de comida,” a ânsia dos vira-latas.
Já disse e repito que, antes, nas Copas do Mundo, éramos a pátria de chuteiras. Hoje, somos chuteiras sem pátria. Fomos infeccionados pelo futebol europeu, mas pela metade; ficamos na dúvida se somos Pelé ou Dunga.
Nesta Copa, só o povo estava de chuteiras, para esquecer os escândalos que lhe mergulharam em cava depressão. Foi diferente de 1950. Lá, sonhávamos com um futuro para o país.
Agora, tentamos limpar nosso presente. Somos uma nação de humilhados e ofendidos, pois o país é dominado por ladrões de galinha e batedores de carteira. E a população queria que o escrete fizesse tudo o que o governo não fez. Mas era peso demais.
O brasileiro não estava preparado para ser o “maior do mundo” em coisa nenhuma. Ser o maior do mundo, mesmo em cuspe a distância, implica uma grave e sufocante responsabilidade. Além disso, era um time de várzea.
Isso era o óbvio; mas foi ignorado. E quando o óbvio é desprezado, ficamos expostos ao mistério do destino. E um dos fatos óbvios foi o endeusamento do técnico. Felipão era mais importante que o time. E ninguém é mais obstinado do que o sujeito que é portador de um erro colossal. O ser humano acredita mais em seus equívocos do que em suas verdades. O técnico é sempre contra a opinião geral.
Em vez de orientar as vocações dos rapazes, Felipão achou que todos tinham de caber em sua estratégia. O técnico devia ser um reles treinador, quase um roupeiro, humilde diante dos craques. Mas o Felipão os tratava como garotinhos inseguros ou então parecia um “Mussolini” de capacete e penacho. A própria figura do Felipão era deplorável – nervoso e malvestido, quase de pijama, era o retrato físico de nosso despreparo. O único jogador do “passado glorioso” foi Neymar – Didi, Zizinho, Ademir guiavam seus dribles.
Quando o alemão fez o primeiro gol, sentimo-nos diante da verdade de que os próprios jogadores suspeitavam: éramos 11 solitários, nosso time era uma ilusão que parecia realidade por causa de Neymar. Nossa meta não era o gol, era Neymar. Esse jovem gênio nos cegou, e com ele acreditávamos que o Brasil voltaria a seus melhores dias. Mas o Brasil nunca está em seus melhores dias. Não esperávamos uma vitória, mas uma salvação. Só a taça aplacaria nossa impotência diante da zona brasileira – era nossa única chance de felicidade.
E aí começaram as interpretações dos idiotas da objetividade: por que perdemos? Tentam explicar a derrota como uma bula de remédio. Como se a derrota tivesse explicação; toda derrota é anterior a si mesma, ela começa 40 anos antes do nada e vem desabrochar em nossos dias. Mas só podemos entender o que “não” houve. Atrás da derrota, estavam todos nossos vícios seculares: salvacionismo, milagres brasileiros, fé no improviso, vitórias abstratas e derrotas políticas.
Além disso, há entre nós e a loucura um limite que é quase nada. Enlouquecemos diante da Alemanha.
Nessa hora do jogo, a loucura explodiu feito uma libertação. Isso, nossa loucura não foi de Napoleões ou Neros, nossa loucura apareceu como um fundo desejo de parar, de ter sossego. Nos jogadores surgiu a ânsia do fracasso, como uma exaustão diante de tanta incapacidade.
Ao contrário do que disse o Parreira em 2006, de que “não estávamos preparados para perder”, dessa vez estávamos todos preparados para a calamidade e secretamente sabíamos disso. Depois daqueles seis minutos em que houve quatro gols, o absurdo adquiriu uma doce, persuasiva, admirável naturalidade.
Depois de 5 a 0, queríamos perder mais, queríamos espojarmo-nos na derrota absoluta, sentíamos a doce nostalgia do aniquilamento. E aí quem surgiu no estádio? O imponderável Sobrenatural de Almeida passou a dirigir o time como um técnico espectral, um fantasma trapaceiro. Dava até para ver que os alemães tiveram pena de nós, os anfitriões desmoralizados.
Até Felipão fez autocrítica. Mas a autocrítica tem a imodéstia de um necrológio redigido pelo próprio defunto.
É isso. Sempre que vai estourar uma catástrofe, o ser humano cai num otimismo obtuso, pétreo, córneo. E perde.
Agora, estamos com uma angústia épica, como uma víbora crispada dentro de nós.
E depois de perdermos para a Holanda por 3 a 0, vimos que não houve derrota – como haver derrota se não tínhamos time? O povo viu no fracasso a confirmação de sua sina de vira-lata e desceu as rampas arrastando os chinelos, como em 1950.
Agora, eis o nosso dilema: ou o Brasil ou o caos. O diabo é que temos a vocação do caos. O Brasil precisa ser feito, e nós não o fazemos. O mal da cultura brasileira é que nenhum intelectual sabe bater um escanteio.
Mas ninguém cresce sem sentir o gosto amargo da vergonha. Sempre fomos condenados à esperança, ansiando por uma redenção pelo futebol, mas pode ser que agora a gente vá assumir a própria miséria, a própria lepra, e isso será nossa salvação.
(Texto de ARNALDO JABOR, no Estadão)