01 junho 2016

Futebol na Linha

Com a camisa velha do Botafogo caindo nos ombros e alcançando os joelhos, o moleque baixo e magrelo jogava bola na viela de terra sem saída ao lado da linha do trem.
Sozinho, em dois, três, quantos houvesse, entre as cadeiras dos velhos fumando, as janelas das senhoras falando, as pernas das moças crescendo, as casas descascadas, os cachorros e as poças e cacos e latas e lençóis pendurados à beira da linha.
Tudo tremia quando o trem passava. Já no apito de longe começava a correria pra tirar do varal o que desse, pra evitar que a fumaceira sujasse tudo. Com medo, o moleque parava o jogo, ficava atrás de uma cadeira, segurando a bola no peito. Ou atrás das coxas das moças, abraçando seus joelhos. Depois da fumaça, do cheiro e das tosses, bola ao chão, cigarros, janelas e moças.
Ao cheiro da poeira, da fumaça do trem e do suor do jogo, foi se somando o das pernas das moças. A inquietude pra dormir. Nem sabia por quê. Cresceu um pouco e já lhes abraçava as coxas na hora do trem, o rosto atrás dos seus quadris.
Cresceu de vez, foi ser eletricista, biscate, vendedor, jogador da várzea, o trem nunca mais passou, uma das moças, novinha, se casou com ele. Fumando na viela, olha hoje a linha parada, os molequinhos com camisas do Botafogo, um deles é seu filho. As senhoras, os lençóis, a bola. E as pernas das novas moças.
Não pensa dessa forma, mas se soubesse e pudesse, diria que o mundo e a história do mundo estão inteiros ali.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)